Por Odemir Silva
A pertinência da
disciplina Filosofia no Ensino Fundamental é uma questão que, há algum tempo,
vem sendo objeto de estudo de pesquisadores ligados às áreas de Educação e
Filosofia. A partir de tais pesquisas, é possível afirmar o valor formativo da
disciplina em questão: ao trabalhar com conteúdos usualmente considerados
filosóficos (amor, justiça, o belo, o bem, o certo, entre outros), ajuda a
compreender o que é ser humano; ademais, o próprio modo filosófico de pensar pode
ser de grande valia, por ser reflexivo, profundo, sistemático e abrangente (cf.
Saviani, 1996). O presente texto não tem como objetivo fundamentar a
pertinência ou não da disciplina Filosofia no Ensino Fundamental, mas sim,
apontar algumas possibilidades para o professor polivalente conduzir suas aulas
almejando aquilo que Lorieri (2002) chama de uma iniciação filosófica. Para
realizar a supramencionada iniciação filosófica, é imprescindível desenvolver
ao menos dois elementos durante as aulas.
O primeiro consiste
em dar continuidade e exercitar a natural capacidade da criança de se admirar
com o mundo que a cerca, tirando proveito do instintivo desejo dela em querer
compreender e dar sentido às coisas. A segunda condição para uma iniciação filosófica
compreende o estabelecimento de uma dinâmica essencialmente dialógica como
prática rotineira. É comum o uso do diálogo ser considerado pertinente apenas
para as disciplinas da área de Humanidades, como se sua aplicação em um
processo de investigação em outras áreas do conhecimento não fosse tão frutífera
ou adequada. Uma investigação por meio do diálogo, como será visto ao longo
desse texto, acaba trazendo uma série de benefícios que extrapolam a simples
aquisição de um determinado conteúdo.
Em relação ao
primeiro elemento da investigação filosófica, a manutenção da admiração da
criança com o mundo, é recomendável um esforço do professor para perceber e
enfrentar as questões que os alunos trazem. Não são raras as situações em que
as crianças se interessam pelos mesmos problemas que a Filosofia, ao longo da
história, vem enfrentando: o que é o certo e o errado, o justo e o injusto, o
belo e o feio, o que é o real, o que é o mundo, o que é ser gente, o porquê das
regras. E muitas vezes tais questões
problemáticas são postas de lado como se fossem menos importantes que o
conteúdo planejado. Ou pior: respostas prontas são oferecidas ao aluno,
encerrando qualquer possibilidade do mesmo resolver ou recriar alternativas ao
problema. Se o processo educacional almeja, entre outras coisas, formar
cidadãos autônomos e responsáveis, é no mínimo contraditório que tal atitude
seja levada adiante.
Os filósofos
norte-americanos Matthew Lipman e Ann Sharp (1984) afirmam que o deslumbramento
das crianças em relação ao mundo é tão profundo que se o mesmo acontecesse com adultos,
tal atitude seria qualificada como religiosa. No entanto, essa capacidade vai
diminuindo com a chegada da vida adulta, pois os adultos tentam controlar o universo
cunhando verdades (científicas, lógicas, matemáticas) - abafando esse saudável
impulso ao questionamento.
Nesta perspectiva,
a necessidade de adotar uma prática reflexiva em sala de aula que contemple os
questionamentos das crianças torna-se algo urgente, uma vez que aquilo que está
em jogo não são as convicções intelectuais adquiridas ao longo de uma formação,
mas sim, o questionamento do direito que o professor tem de privar o aluno de
buscar, por ele mesmo, os sentidos do mundo e, consequentemente, condenar as
crianças a um mundo pronto onde os valores já estão estabelecidos, dando a impressão
que elas nada podem fazer em relação a isso. Segundo Lorieri (2002, p. 43):
“Todos os seres humanos têm o direito de decidir os rumos das suas vidas”.
Também crianças e jovens têm esse direito, como cabe-lhes o direito de aprender
a dominar o uso das ferramentas intelectuais que lhes possibilitem as
decisões.”
Desta forma, a
introdução da reflexão acerca das questões trazidas pelos alunos não só ajuda a
preservar o deslumbramento da criança com o mundo que a rodeia, como também
oferece um ambiente propício ao fomento das ferramentas intelectuais dos discentes,
condição para a formação da almejada autonomia de pensamento.
A inserção da
prática reflexiva em sala de aula é viabilizada pelo diálogo, o outro elemento
imprescindível para a realização de uma iniciação filosófica. É no
estabelecimento de uma dinâmica dialógica que diferentes perguntas e respostas
são construídas e desconstruídas (dependendo da qualidade dos argumentos que as
sustentam), bem como se complementam e se transformam.
Deve-se ressaltar
que um diálogo é muito diferente de um bate papo, de um debate ou de uma
conversa na qual todos entram em acordo no final da mesma. Em um diálogo não
existe o (saudável) descompromisso de um bate papo entre amigos, o qual tem
como objetivo apenas o entretenimento dos envolvidos.
Diferentemente do
debate, em um diálogo não existe um vencedor, a idéia não é destruir a
argumentação do interlocutor, mas sim, apontar eventuais falhas no raciocínio
do mesmo e, por conseguinte, colaborar com a construção do conhecimento em questão. Não há
garantia que um diálogo termine em um consenso,
a diversidade de
idéias na busca coletiva de conhecimento é o motor dessa dinâmica.
O diálogo favorece
o cultivo daquilo que Lorieri (2002) cunhou de ferramentas intelectuais e que
Lipman (1995) chama de habilidades de pensamento: formular perguntas
relevantes, sustentar os argumentos demonstrando o percurso do raciocínio, autocorrigir-se,
compreender e criar conceitos, transitar entre as diferentes linguagens
mantendo o significado original do conceito em questão, entre outras.
Lipman desenvolveu
um programa educacional (Filosofia para Crianças- Educação para o Pensar) que
vê na investigação filosófica um caminho para aquisição de um pensamento mais
cuidadoso.
Segundo o filósofo
norte-americano, a utilização dessa proposta desde o início da vida escolar
traria grandes benefícios para os alunos, entre eles, garantir o natural
espanto da criança em relação ao mundo – como colocado anteriormente, condição
necessária para desencadear qualquer processo reflexivo. Lipman utiliza alguns
recursos para viabilizar a preservação do espanto supracitado: novelas
filosóficas (histórias nas quais crianças se envolvem em uma série de aventuras
levando os alunos a refletirem sobre os dilemas enfrentados pelos personagens);
cultivo das já mencionadas habilidades de pensamento (como as de investigação, raciocínio,
formação de conceitos e tradução); formação de Comunidades de Investigação.
Estas últimas compreendem espaços onde, a partir do diálogo, as questões
levantadas pelos alunos passam por um processo de investigação filosófica.
A ideia de Lipman é
que o sistema educacional funcionasse baseado em um modelo que se realiza por
meio de pesquisas e investigações (um modelo heurístico), pois se não é dada ao
aluno a chance de participar do processo investigativo, o resultado será apenas
um aluno instruído e não um aluno investigador, como o autor almeja.
Uma vez que se
pretende formar um aluno pesquisador e crítico, a introdução de uma iniciação
filosófica em sala de aula se torna desejável. E tanto melhor se essa iniciação
ocorrer não só no escopo da disciplina Filosofia, mas for igualmente incitada
nas propostas dos demais professores. Por estarmos especificamente tratando do
Ensino Fundamental I, defende-se que a prática cotidiana do professor
polivalente também poderia/deveria ser imbuída deste convite ao filosofar, a um
processo de enfrentamento de problemas por meio de uma reflexão radical,
metódica, global, crítica e criativa.
As crianças
naturalmente trazem problemas para serem enfrentados em sala de aula, e é no
afrontamento dessas questões, dentro de um diálogo investigativo (em que
determinadas habilidades de pensamento são desenvolvidas), que uma iniciação filosófica
se inicia. Há aqui um duplo desafio: não apenas conseguir detectar e
desenvolver filosoficamente as questões dos alunos, mas igualmente, realizar as
várias conexões existentes entre os espontâneos questionamentos dos alunos e os
conteúdos curriculares a serem trabalhados ao longo dos anos letivos.
São inúmeras as
possibilidades de relações entre os temas ditos filosóficos (e mencionados
anteriormente) e os conteúdos das diferentes disciplinas escolares. Mais um
indício de que o modo filosófico de pensar não deve se restringir apenas à aula
de Filosofia, mas ser igualmente desenvolvido nas demais disciplinas da matriz
curricular.
Referências
bibliográficas
LIPMAN, M. O pensar
na educação. Tradução de Ann Mary Fighieira Perpétuo.
Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes, 1995.
________; SHARP, A.M. Looking for meaning,
Instructional Manual to accompany
Pixie.Montclair, NJ: The First Mountain
Foundation, 1984.
LORIERI, M.
Filosofia: fundamentos e métodos. Filosofia no ensino fundamental.
São Paulo: Cortez, 2002.
SAVIANI, D.
Educação: do senso comum à consciência filosófica. Campinas:
Autores associados,
1996.
Guilherme Szymanski Ribeiro Gomes é mestre em
Filosofia pela PUCSP (2006). Professor do Centro Universitário Belas Artes de
São Paulo, professor de Filosofia (Ensino Fundamental) da Prima Escola Montessori
de São Paulo e do Colégio Ofélia Fonseca. Pertence ao corpo docente do curso de
pós-graduação lato sensu Fundamentos de uma Educação para o Pensar
(COGEAE/PUC).
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