Por Odemir Silva
Neste Módulo, vamos abordar uma visão histórica dos
governos democráticos: como surgem, permanecem,
particularizam-se e distinguem-se dos governos autoritários.
Da democracia direta à democracia representativa, o
exercício direto da vontade popular sofreu profundas alterações. Enquanto
aquela preconiza o governo de todos os cidadãos nos processos decisórios, a
democracia representativa baseia-se no fato de que o povo exerce o poder,
indiretamente, através da escolha dos seus representantes, que por sua vez
exercem o poder, em seu nome.
Hoje, a efetivação dos direitos civis e políticos,
que identificam os governos democráticos em todos os países do mundo, é
avaliada partindo-se de características, tais como: liberdade de formar e
aderir a organizações; liberdade de expressão; direito de voto; elegibilidade
para cargos públicos; direito de líderes políticos disputarem apoio e
conquistarem votos; garantia de acesso a fontes alternativas de informação;
eleições livres, frequentes e idôneas; e instituições para fazer com que
as políticas governamentais dependam de eleições e de outras manifestações de
preferência do eleitorado.
Entretanto,
não há fórmulas capazes de prever as metamorfoses por que passam muitos países
que transitam entre os polos que separam os regimes autoritários dos
democráticos.
No mundo contemporâneo presenciamos a maior onda de
democratização vivida desde sua adoção no início do século XIX.
Quando pensamos em democracia, pensamos em
participação política, representação, legitimidade. Na definição clássica,
aristotélica, a democracia significava o governo soberano do povo – e, para Aristóteles, isso não
necessariamente era bom. Ao contrário, o governo do povo podia ser a degeneração do bom exercício
do poder, uma vez que o exercício direto da vontade popular, sem limites ou
regras, levaria a uma tirania. O conceito sofreu muitas mudanças nos séculos
XVII, XVIII e XIX, aproximando-o do que hoje conhecemos como democracia
representativa.
A democracia representativa se estabelece como
alternativa à forma direta do poder popular, dadas as dificuldades práticas de
se exercer o poder diretamente. A ideia central da democracia representativa é
que o povo escolhe seus representantes, que por sua vez exercem o poder, em seu
nome. A escolha direta legitima o exercício do poder pelos representantes – e
não mais a tradição, a herança, o direito de sangue, o exercício da força ou
outras possíveis formas de se estabelecer um núcleo governante. De certa forma,
a democracia representativa é elitista: poucos governam, muitos são os
governados. Mas é o processo de escolha – eleições -, e não quem o exerce
diretamente, que é reconhecido como desejável e legítimo.
Ao longo do século XIX, muitas barreiras para a
participação civil foram abolidas: exigência mínima de propriedade e/ou renda,
idade, sexo. Muitas somente o foram no século XX. De fato, foi somente no
século XX que as democracias representativas se tornam de massa – de poucos
milhares, passam a milhões os participantes do processo eleitoral; de cerca de
1% no século XIX, passam a praticamente 100% no século XX. É uma revolução sem
precedentes. E a democracia é, portanto, bastante “jovem”, se pensarmos toda a
história política da humanidade.
Significado Moderno da Democracia
O que significa hoje democracia? O debate moderno,
dos séculos XVII-XIX, ainda tributário do legado aristotélico, ligava a
democracia a fins – democracia é o que leva a determinados resultados, ao bom,
belo, justo. É a doutrina do bem comum que está presente na transição de
sistemas autoritários a democráticos, em contraposição ao bem de somente alguns
privilegiados (monarquia, clero, aristocracia). Entretanto, essa visão não pôde
ser sustentada por muito tempo. Afinal, se vivemos num mundo cada vez mais
diferenciado e mais plural, muitas vezes o que é o bom para um grupo não o é
para outros. Surge assim a concepção de democracia não ligada aos fins, ou aos
resultados – porque existem muitos mundos possíveis e corretos a partir de uma
multitude de visões -, mas ligada ao processo, ao como se faz.
No debate contemporâneo, portanto, houve uma mudança
de enfoque: do conteúdo da democracia ao método da democracia. De uma definição
ampla, passamos a uma definição minimalista: democracia é uma forma competitiva
de escolher os representantes, segundo Schumpeter. Os cidadãos e cidadãs
escolhem um grupo, considerado melhor, e o escolhe novamente, ou escolhe
outros, nas eleições seguintes; esses grupos governarão. A visão minimalista
evolui, nesta concepção liberal, para o que Robert Dahl chama de “poliarquia”.
O que é a poliarquia? É a existência de muitas condições que irão
assegurar que o processo de escolhas (o método) será realizado de maneira
livre, competitiva e que refletirá ao máximo a vontade dos indivíduos. Não só
isso: a poliarquia diz respeito ao jogo eleitoral, mas também a como
a sociedade pode expressar suas preferências, e como o sistema
governamental tratará essas preferências. Na poliarquia, entende-se que existem muitos interesses na
sociedade, nem sempre convergentes: ao contrário, há conflitos e assimetrias
(com a predominância, muitas vezes, de grupos mais poderosos).]
Entretanto, na sua definição, a poliarquia antevê formas legítimas de constituição do poder
democrático e também de sua destituição. Antevê, também, formas de ampla
participação que resultem em políticas “antenadas” com o que quer a
população. Segundo Dahl, para que o sistema de fato funcione, é preciso
que os requisitos abaixo sejam atendidos:
· Liberdade
de formar e aderir a organizações;
· Liberdade
de expressão;
· Direito
de voto;
· Elegibilidade
para cargos públicos;
· Direito
de líderes políticos disputarem apoio e, consequentemente, consquistarem
votos;
· Garantia
de acesso a fontes alternativas de informação;
· Eleições
livres, frequentes e idôneas; e
· Instituições
para fazer com que as políticas governamentais dependam de eleições e de
outras manifestações de preferência do eleitorado.
|
Não muitas sociedades detêm todos esses elementos
ao mesmo tempo e todo o tempo. Existem muitos sistemas hoje que monitoram
o que chamamos de “qualidade da democracia”, onde muitos quesitos são
avaliados. Democracy Index e Freedom House são alguns desses organismos que
monitoram direitos políticos e civis no mundo, e divulgam escalas de democracia
conforme o respeito a direitos humanos, direito de associação, proteção a
minorias, liberdade na internet e de imprensa, eleições etc.
Segundo a Freedom House, em 2013 o Brasil foi
considerado um país com bastante garantia das liberdades. Numa escala de 1-7 em
que 1 é o máximo e 7 é o mínimo (menos livre), o Brasil apresenta um fator 2 em
direitos civis, liberdades e direitos políticos. Já a Venezuela é parcialmente
livre, com limite a sua imprensa, com fator 5, como o Egito. E países como
Arábia Saudita, Iran, Yemen e Oman são países não livres, com nota 7.
De forma que, se de um lado existem países com
altas taxas de liberdade, e eles se concentram na Europa e nas Américas,
existem muitos não-democráticos e, mais ainda, regimes híbridos: embora tenham
alguns aspectos que apontem para uma democracia, têm também outros que apontam
para a autocracia. Os regimes híbridos estão numa zona cinza, em que nem
podem ser considerados de fato livres, nem ditaduras. Mesmo que tenham, por
exemplo, eleições, não apresentam garantias civis completas, liberdade de
expressão e associação; ou suas eleições são marcadas por corrupção e
violência.
Segundo algumas estimativas, cerca de dois bilhões
de pessoas ainda vivem, hoje, sob governos autoritários. Alguns pontos importantes na
atualidade remetem às questões de como um país transita do autoritarismo para a
democracia, ou seja, de como ele se torna democrático; e de como um país que
faz a transição mantém-se democrático e não sofre um retrocesso autoritário. Ou
seja, o que explica o surgimento da democracia em determinados contextos, e por
qual razão alguns países se consolidam como democracias avançadas ou híbridas,
ou seja, com maiores ou menores garantias de liberdade, e outros voltam a ser
autocracias.
Quanto ao primeiro tema – como os países se tornam
democráticos – um dos primeiros argumentos vem da teoria da modernização,
segundo a qual mudanças sócio-econômicas (urbanização, maiores taxas de
alfabetismo e da educação, industrialização e expansão da mídia) levariam
naturalmente ao surgimento de sólidas democracias. A democracia seria apenas o
corolário do desenvolvimento econômico. Lipset, autor de trabalho pioneiro, é
um dos principais expositores dessa vertente teórica, e a partir daí gerou-se a
maior produção acadêmica na área de política comparada já realizada.
Em contraposição, Samuel Huntington argumentou que mudanças sócio-econômicas levam a
maior consciência, maior participação e mais demandas; portanto, não
necessariamente levam a democracias. São, na verdade, a razão mesma para um
grande número de conflitos, golpes e instabilidade política. Ou seja, se a
sociedade muda num ritmo muito rápido, novos grupos sociais surgem e se
mobilizam politicamente, mas as instituições políticas muitas vezes não se
desenvolvem com a mesma velocidade – portanto, não necessariamente o
desenvolvimento econômico gera democracia.
Segundo estudos mais recentes e
bastante reconhecidos, o surgimento da democracia não necessariamente está
ligado ao desenvolvimento econômico. Ao contrário, a democratização pode
ocorrer em qualquer situação econômica. Entretanto, uma vez estabelecida a
democracia, a economia tem um papel fundamental na sua manutenção/eliminação:
ela é mais fácil de sobreviver em países com mais recursos (Przeworski).
No Quadro I, vemos que países mais ricos são mais
sujeitos a manterem suas democracias, e os mais pobres a perdê-las. Essa não é,
entretanto, uma discussão pacífica: alguns autores contestam dizendo que o
efeito é o mesmo quando o status quo é um regime autoritário - ou
seja, havendo recursos econômicos abundantes, mesmo países ditatoriais podem
ser estáveis politicamente, e jamais tornarem-se democracias (Boix e Stokes).
Distribuição de Países conforme Renda e
Sistema Político (1970 - 1993)
Renda
|
||||
Sistema Político
|
Baixa
|
Média Baixa
|
Média Alta
|
Alta
|
Sempre Autoritários
|
20
|
8
|
1
|
0
|
Sempre Democráticos
|
2
|
6
|
3
|
19
|
Transeuntes (autoritários-democráticos)
|
18
|
15
|
11
|
1 (Espanha)
|
Fontes: Gorvin (1989); Banks
(1994); The World Bank (1995). Apud Santos, 1998.
O debate sobre o surgimento e a estabilidade de
democracias também incorpora outros elementos além do desenvolvimento econômico.
Uma visão defende que crenças e atitudes dos indivíduos são fundamentais para
que a transição para a democracia ocorra, ou seja, é preciso haver uma cultura
cívica favorável à democracia. Uma terceira visão olha para aspectos sociais e
políticos do sistema: a estabilidade democrática dependeria da capacidade de
resolver conflitos pela via da negociação, e não da ruptura, por meio de canais
institucionalizados politicamente.
Uma outra visão afirma, ainda, que países ricos em
petróleo e em recursos tendem a ser autocracias, - onde o governante tem
controle absoluto em todos os níveis de governo sem o consentimento dos governados
-, porque aumentam os conflitos sobre como distribuí-lo, instigam
conflitos internacionais, aumentam a corrupção, mas sobretudo porque os governos não dependem dos impostos dos cidadãos para
prestarem serviços, dado o excesso de receita que obtêm com os recursos
naturais – o que leva, de um lado, a que a sociedade não cobre de seus
governantes resultados eficazes, e, se cobrarem, o Estado tem como aumentar a
repressão com os recursos que detêm, a um custo político baixo. Alguns autores
chamam inclusive esse fato de “a maldição dos recursos naturais”, ou “a
maldição do petróleo” (oil curse), dada a frequência com que países
ricos em recursos naturais são autoritários ou semiautoritários.
É muito importante ressaltar outro argumento de
Samuel Huntington: o de como houve, no mundo, três ondas de
democratização.
A primeira vai do início do século XIX – com o
sufrágio garantido para homens brancos nos EUA - até mais ou menos a
ascensão de Mussolini, em 1922. No seu pico, chegou-se a ter 29 democracias no
mundo.
A segunda onda vai do fim da Segunda Guerra Mundial
até 1962: foram 36 democracias reconhecidas (entre 1962 e anos 70, esse número
caiu para 30).
A terceira onda, sem precedentes na história da
humanidade, vai dos anos 70 até os dias atuais. Marcada pela Revolução dos
Cravos, em Portugal, inclui as democratizações na Ásia, na America Latina e no
Leste Europeu, depois da queda do Muro de Berlim. O número exato de democracias
varia conforme os critérios usados, mas estão acima de 100.
Muitos pesquisadores criticam a visão de Huntington, argumentando que, se o voto feminino for
contabilizado, as “ondas” desaparecem – só muito tardiamente as mulheres
tiveram o direito assegurado; mas também pelo seu elitismo e etnocentrismo, em
basear-se excessivamente na visão norte-americana. De toda maneira, é uma forma
interessante de ver a democracia, não como algo fixo, dado, mas como movimentos
que ascendem e podem retroceder. Hoje, a Primavera Árabe é vista, por alguns,
ao lado de outras mudanças de regime na Ásia e África, como a Quarta Onda.
Conclusão
Vimos neste Módulo que, a democracia mudou ao longo
da história da humanidade, de uma democracia antiga direta à representativa,
onde escolhemos nossos representantes. Nos séculos XIX e XX, ela incorporou
massas de cidadãos e cidadãs.
A democracia moderna é baseada em uma série de
critérios que garantem a competitividade, a transparência e a honestidade dos
processos eleitorais. Também se baseia em se essa democracia é capaz de
processar as demandas da sociedade e resolver conflitos.
As democracias variam bastante – há democracias
avançadas e democracias híbridas. Não há dois sistemas iguais. Existem
organizações, hoje, que acompanham a qualidade da democracia no mundo, e medem
como são feitas as eleições, as garantias de liberdade e os resultados das
políticas.
Existe um longo debate sobre o que pode levar à
democracia, e torná-la estável. As explicações focam no desenvolvimento
econômico, cultura cívica e instituições.
Houve momentos (ondas) de expansão da democracia no
mundo. Vivemos hoje o período de maior democratização da história da
humanidade.