sábado, 4 de julho de 2015

Partidos Políticos



Por Odemir Silva
           
Introdução
Foi publicada em 1951, há mais de sessenta anos, portanto, a obra clássica de Maurice Duverger, “Os partidos políticos”. O livro é considerado, com justiça, um clássico da ciência política por várias razões. Além de, evento raro nesse campo, estabelecer  “leis”, no sentido de conjecturas fortes, que postulam uma relação causal entre sistemas eleitorais e sistemas partidários, Duverger construiu uma metodologia de investigação que separa dimensões consideradas relevantes na análise dos partidos políticos; e elaborou uma tipologia dos partidos que relaciona suas origens históricas e características estruturais. Em todas essas direções, formulou um programa de pesquisa que continua a ser seguido, em graus diversos, pela literatura contemporânea especializada. O livro tem, portanto, importância histórica e propostas de pesquisa ainda atuais.
Vamos discutir os argumentos de Duverger em três partes, antecedidas por um breve comentário sobre a situação dos estudos acerca dos partidos políticos na época de sua publicação.

Consolidação Institucional dos Partidos Políticos
Desde a consolidação institucional dos partidos políticos, muito se debateu sobre eles. Com honrosas exceções, as discussões obedeciam a um viés jurídico-constitucional, no qual a regra, suas origens, sua articulação com o sistema político como um todo, importavam mais que o funcionamento concreto dos partidos. Nesse quadro, duas obras seminais levaram o estudo dos partidos para o terreno da sociologia política.
A primeira obra, cronologicamente, foi “A democracia e a organização dos partidos políticos”, de Moisei Ostrogorski, publicado em 1902. Ostrogorski substituiu a análise formalista e normativa pela tentativa de aplicar procedimentos de observação dos partidos, descrição de suas características e generalização empírica. Seu foco foi o conjunto de forças sociais que atuam na política, representadas nos partidos e nos grupos que atuam no seu interior.
A segunda obra foi “Para uma sociologia dos partidos políticos na democracia moderna: investigação sobre as tendências oligárquicas na vida dos agrupamentos políticos”, de 1911, na qual Robert Michels,   sob influência direta de Max Weber, apresentou sua conhecida “lei de ferro” das oligarquias. Conforme seu argumento, a expansão progressiva do direito de voto, até o sufrágio universal, teria criado um ambiente político no qual o sucesso eleitoral dependia cada vez mais de organização.
Organização, por sua vez, dependia da criação e manutenção de uma burocracia especializada, burocracia esta que tenderia a concentrar o processo de tomada de decisões. Ou seja, sufrágio universal exige partidos de massa, partidos de massa existem apenas com burocracias organizadas, burocracias conduzem, por sua vez, à oligarquia. Paradoxalmente, o aumento da democracia levaria, “inexoravelmente”, a sua negação.

Origem e Tipologia dos Partidos Políticos
Como já exposto, os partidos políticos surgem, no contexto europeu, em meados do século XIX, como decorrência do funcionamento da democracia representativa. Na época, já havia parlamentos em operação e seus membros eram recrutados entre o pequeno grupo de homens de posses, tradição, educação, os “notáveis”, de cada localidade. Em pouco tempo, esses notáveis encontraram-se na situação de exercer seus mandatos como representantes dos eleitores, ou seja, eleitos por eles para cumprir um mandato definido. Para enfrentar as eleições, organizaram comitês eleitorais. A relação entre grupos de parlamentares eleitos e seus respectivos comitês eleitorais constituiu o embrião do primeiro tipo de partido político a surgir: o partido de quadros.
A ampliação progressiva do sufrágio, contudo, alterou substancialmente o ambiente político que deu origem a esses partidos. Não apenas o número de eleitores, e com ele a complexidade das estratégias eleitorais, aumentou. O fim do voto censitário, das exigências de renda e propriedade aos eleitores, fez com que as massas trabalhadoras ingressassem como atores importantes na política institucional. Nesse ambiente surgiu um novo tipo de partido, o partido de massas.
O caminho típico de criação desses partidos passa pela organização dos grupos sociais até então não representados, a constituição de comitês eleitorais e a eleição de bancadas parlamentares, normalmente sob influência forte das direções partidárias previamente constituídas. Partidos de massa resultam, portanto, da combinação de grupos sociais, comitês eleitorais e grupos parlamentares.
Para Duverger, as diferenças de origem refletem-se em diferenças de estrutura, ou seja, a lógica que leva à formação de cada tipo de partido estimula o surgimento de características estruturais distintas.
De forma resumida, podemos constatar que partidos de quadros são, geralmente, partidos burgueses, liberais ou conservadores,  que:
          dedicam pouco esforço ao recrutamento,
          concentram suas atividades nos períodos eleitorais,
          dependem para seu financiamento do aporte das próprias elites partidárias,
          contentam-se com uma organização interna relativamente simples,
          funcionam com direções concentradas e personalizadas,
          exibem um alto grau de disputa interna entre grupos pequenos de suas direções,
          trabalham com escassa consistência programática,
          dão pouca importância a fatores ideológicos, e
          operam com uma estrutura decisória descentralizada e pouco hierárquica.
Em contraste, os partidos de massa, tipo construído a partir da observação dos partidos socialistas e comunistas:
          têm no recrutamento, assim como na propaganda e doutrinação, atividades permanentes,
          dependem para seu financiamento das contribuições de seus filiados,
          adotam formas complexas de organização, com redes de unidades políticas e  uma burocracia permanente,
          suas lideranças demonstram pouco personalismo na sua atividade,
          a motivação principal da disputa interna é ideológica,
          mostram alta consistência programática, e
          tendem a criar estruturas decisórias hierárquicas e centralizadas.

A Estrutura dos Partidos Políticos - Dimensões Relevantes
Para a análise da estrutura organizacional dos partidos, Duverger propõe uma série de elementos a ser considerados. Trata-se, na verdade, de uma relação das perguntas relevantes que devem ser respondidas por toda pesquisa sobre o assunto. A combinação das respostas definirá tipos de partidos, que podem ser usados para fins de descrição e classificação dos casos estudados. Duverger agrupa esses elementos em três conjuntos.
O primeiro conjunto é o que denomina arcabouço partidário, que contempla a estrutura partidária, os elementos de base e a articulação entre a estrutura e esses elementos.
Estrutura partidária é definida de acordo com o grau de independência do partido em relação à sociedade civil organizada. Nessa perspectiva, o autor chama de partidos diretos aqueles formados sem a mediação de grupos sociais organizados. Por contraste, partidos indiretos seriam aqueles formados a partir da iniciativa de grupos desse tipo, como associações e sindicatos. É claro que partidos diretos coincidem, pelo menos parcialmente, com partidos de quadros e partidos indiretos, com partidos de massa.
Elementos de base do partido são os diferentes grupos elementares que o compõe, como os diretórios, comitês, seções, células, entre outros. A arquitetura organizacional que une essas unidades partidárias pode ser classificada de acordo com sua complexidade entre os extremos,  simples e complexo.
Finalmente, a interação entre estrutura e elementos de base focaliza a qualidade das relações verticais e horizontais. O sistema de relações horizontais estabelece a comunicação sem a intermediação do centro, e as ligações verticais se dão a partir da instância superior do partido.  Essas relações podem ser fortes ou fracas, horizontais ou verticais, resultando, em cada caso, em partidos caracterizados por maior ou menor centralização e maior ou menor democracia interna. Entre as combinações mais frequentes nesse plano de análise estariam partidos que operam conforme o centralismo autocrático (quando não há participação da militância partidária nas decisões da cúpula), outros, conforme o centralismo democrático (quando há participação da militância nas decisões da cúpula partidária).
O segundo conjunto que Duverger separa refere-se aos membros do partido. Nesse ponto é relevante, em primeiro lugar, verificar as condições de adesão. Há exigências de pagamento de contribuições mensais, compromisso com a disciplina, identificação ideológica, expectativa de militância? Caso afirmativo, a adesão é regulamentada, caso negativo é aberta.
Em segundo lugar, cabe aferir o grau de participação predominante entre os filiados, se apenas eleitores, simpatizantes ou militantes.
Em terceiro lugar, cumpre nomear a natureza dessa participação que, segundo o autor, pode ser sagrada, quando assume um caráter totalizante, ou profana, quando expressa um compromisso racional; e comunal, quando a adesão é resultado da pressão do grupo, ou social, quando decorre do cálculo individual.
O terceiro conjunto diz respeito à direção do partido. As dimensões aqui selecionadas são a forma de escolha dos dirigentes:
          se por eleição direta de todos os filiados ou por algum colégio eleitoral menor;
          a propensão à oligarquia nessas direções, ou seja, se o acesso aos postos de comando está restrito aos dirigentes e seus amigos ou se permanece aberto a todo filiado; e,
          ao sentido da relação de influência entre direção partidária e parlamentares eleitos, ou seja, se a direção tem comando sobre os parlamentares ou se simplesmente reflete e transmite suas decisões para o conjunto dos filiados.

Sistemas Partidários
Ao levar a reflexão dos partidos considerados de forma isolada para a interação dos partidos em sistemas partidários definidos, Duverger tem como alvo duas questões fundamentais:
1) A diversidade no número de partidos que cada país mantém;
2) a consequência do número de partidos na dinâmica dos governos.

Em ambas questões, as contribuições do autor foram inovadoras. Numa época em que a dinâmica do governo era relacionada ao sistema de governo, parlamentarista ou presidencialista, ou ao formato do legislativo, unicameral ou bicameral, Duverger postulou uma relação entre número de partidos e estabilidade dos governos. Para ele, sistemas bipartidários tenderiam, tanto na regra presidencialista quanto na parlamentarista, a serem mais estáveis que sistemas multipartidários. Sistemas de muitos partidos dependem de coalizões para formar maiorias e as coalizões tendem a ser mais instáveis que as maiorias formadas por  um só partido.
Mas, quais as razões que levam determinados países a produzir sistemas bipartidários e outros a alimentar sistemas multipartidários? Duverger distingue diversos fatores. Há fatores específicos, históricos, como a composição étnica e religiosa do país, as divisões produzidas pela tradição e a história de cada um, e fatores gerais, que operam em todos os casos particulares. Os mais importantes entre os fatores gerais são os econômicos, as divisões de classe, os ideológicos e os técnicos, entre os quais sobressai o sistema eleitoral.
É claro que Duverger não sustenta que o sistema eleitoral produza a proliferação de partidos. Partidos refletem diferenças políticas relevantes em cada sociedade, diferenças que não dependem do sistema eleitoral vigente. O sistema pode, contudo, favorecer a cristalização dessas diferenças em partidos autônomos, atuando, conforme a imagem do autor, como um freio ou acelerador do processo.
Os exemplos são retirados da história observada dos partidos políticos até o momento da formulação do autor, e as chamadas “leis de Duverger” nada mais são que a postulação de um caminho lógico particular a cada sistema eleitoral e a hipótese de sua repetição futura por indução.
Assim, no que respeita exclusivamente ao número de partidos, Duverger sustenta em sua primeira “lei”, que sistemas eleitorais majoritários de um só turno levam a sistemas bipartidários. Isso porque nesse sistema partidos minoritários são sempre sub-representados. A verificação desse resultado ao longo de várias eleições levaria o eleitor a optar por alguma forma de voto útil, a concentrar sua escolha nos partidos com possibilidade real de vitória, na prática aos dois maiores partidos.
Pela mesma razão, sistemas eleitorais majoritários com dois turnos de votação, como o ballotage na França, tenderiam a produzir sistemas partidários com mais de dois partidos. Isso porque o eleitor, ao saber que disporá de um segundo momento de voto, não se vê compelido ao voto útil.
Finalmente, sistemas de voto proporcional tendem a gerar sistemas multipartidários, sistemas com um número de partidos ainda maior que aqueles associados ao voto majoritário com dois turnos de votação. Isso porque no sistema proporcional o número de cadeiras de cada partido deve, idealmente, espelhar o percentual de votos por ele obtido. Não há descarte de votos no momento da eleição e a formação da maioria é problema não dos eleitores, mas deixado ao critério dos eleitos.

Partidos e Democracia
Vimos que o estudo dos partidos políticos, na perspectiva da sociologia do início do século XX, levou ao ceticismo com relação às possibilidades de permanência da ordem democrática em expansão nas décadas anteriores. A lei da circulação das elites, de Pareto e Mosca, assim como a lei de ferro das oligarquias, de Michels, expressavam esse ceticismo e a crença no retorno à constante histórica profunda das relações de poder: poucos mandam, muitos obedecem.
Duverger desenvolve uma relação ambígua com essa vertente. De um lado, aceita o pressuposto fundamental de seus predecessores: o poder está, em todos os casos, nas mãos de poucos e a regra democrática nada mais é que um mecanismo de seleção e renovação das elites. No entanto, o surgimento e proliferação  dos partidos de massa representam, para o autor, uma ampliação significativa dos espaços de seleção das elites dirigentes. Antes, na época dos partidos de quadros, dos notáveis, a elite originava-se de um pequeno grupo do universo das classes proprietárias. Com os partidos de massa, representantes autênticos das classes trabalhadoras ganham acesso a posições de mando e passam a constituir uma nova elite, representativa da maioria dos cidadãos de seus países.
Segundo Duverger, se abandonarmos a definição ilusória de democracia, governo do povo para o povo, e aderirmos à definição realista, governo para o povo, veremos que, no regime representativo, a democracia não é ameaçada pelos partidos de massa e suas burocracias especializadas em propaganda, doutrinação e campanhas eleitorais. Pelo contrário, esse tipo de partido é condição para que dirigentes saídos das classes majoritárias e a elas ainda vinculados assumam o governo e tomem as decisões para o povo.
Democracia representativa com partidos de quadros é, para Duverger, uma combinação conservadora. Mais conservadora do que ela, só a ausência de partidos formalizados, o governo de personalidades isoladas, pois, onde não há partidos a política só se move no sentido de manter a desigualdade pré-existente.
Conclusão
Vimos neste Módulo que, conforme Maurice Duverger, a eleição dos representantes do povo no parlamento e a ampliação do direito de voto são os fatos históricos que estão na origem dos partidos de quadros e dos partidos de massa, respectivamente.
Vimos também que o autor propõe uma agenda de pesquisa dos partidos políticos que engloba algumas dimensões. Na dimensão da estrutura partidária é relevante identificar as unidades mínimas que compõem o partido, sua relação com grupos sociais organizados e as relações que se estabelecem entre essas unidades e as diversas instâncias dirigentes.
Na dimensão dos filiados importa perguntar as condições da adesão,  os deveres do filiado e a forma como os filiados percebem sua pertença ao partido. Finalmente, na dimensão da direção, há que verificar o processo de seleção, a propensão à oligarquização e as relações da direção com a bancada parlamentar do partido, um foco de poder autônomo.
Vimos, ainda, as relações que o autor estabelece entre os sistemas eleitorais e o número de partidos: as relações entre o voto distrital majoritário em turno único e bipartidarismo, entre voto distrital majoritário em dois turnos e um sistema com mais de dois partidos e entre voto proporcional e um número ainda maior de partidos.

Fonte:             Instituto Legislativo Brasileiro - ILB