Por Odemir Silva
Histórico
e Características Principais
Introdução
O que são doutrinas políticas
contemporâneas?
Na perspectiva que aqui adotamos, são
aquelas correntes de pensamento que inspiram e orientam os partidos políticos
importantes – em termos de influência, voto e acesso ao poder – no mundo de
hoje. Dito de outra maneira, aquelas correntes que definem os objetivos de
partidos atuais e, em alguns casos, os meios recomendados para alcançar esses objetivos.
O critério, portanto, é prático. Não
vamos discutir correntes de pensamento que alimentaram partidos fortes no
passado, mas insignificantes no presente. Não vamos discutir, por exemplo, uma
corrente conservadora, uma vez que hoje nenhum partido de peso defende o
retorno à ordem econômica, social e política pré-moderna. Pela mesma razão, não
discutiremos a corrente anarquista, uma vez que os partidos dessa tendência
perderam peso, nos países onde ainda eram importantes, no período entre as duas
guerras mundiais.
Um esclarecimento final é necessário.
Grandes correntes de pensamento político não são objetos que possam ser
estudados a partir de uma definição clara, unívoca, aceita por todos.
Adversários e partidários têm interpretações diferentes de cada corrente, e
mesmo no interior de cada uma delas encontramos divisões importantes. A seleção
de assuntos e autores feita no curso é, portanto, necessariamente parcial.
Escolhemos obras de autores consagrados que tratam de temas que a maior parte
dos novos esquerdistas considera fundamentais. No entanto, outros temas e
autores, talvez tão importantes quanto esses, ficaram de fora. Vamos discutir,
para dizer de forma mais precisa, uma seleção de temas e autores importantes
para esta corrente.
Assim, para que você possa melhor
absorver o conteúdo desse curso e atender aos objetivos a que se propõe,
encontra-se disponibilizado em PDF o livro Partidos políticos brasileiros.
Programas e diretrizes doutrinárias, organizado por Nerione Nunes Cardoso
Júnior, editado pelas Edições Técnicas do Senado Federal.
Social-Democracia
Ao final desta leitura esperamos que
você possa:
Distinguir as características
principais da social-democracia;
Indicar suas diferenças em relação ao
socialismo;
Histórico
e Características Principais
Para a análise da social-democracia,
nesta unidade, tomaremos como texto base o conjunto de ensaios, já clássicos,
de Adam Przeworski, reunidos, em 1985, sob o título Capitalismo e
Social-Democracia.
Veremos, em sequência, nesta unidade:
Origem da social-democracia;
Estado de bem-estar social.
Qual a relevância do fenômeno
social-democrata? Em primeiro lugar, independentemente de suas limitações e falhas,
a social-democracia parece ser a forma predominante de organização política dos
trabalhadores em condições de capitalismo democrático. Se o caminho da
insurreição é excluído, seja por inviável, seja por não conduzir ao socialismo,
a via social-democrata surge como alternativa natural aos que perseguem os
objetivos socialistas. Críticas são necessárias, nessa perspectiva, basicamente
como meio de correção e ajuste de rumos e políticas específicas, dado que o
caminho geral, por exclusão, estaria afirmado. Apenas "corrigindo" a
experiência social-democrata poderíamos chegar ao socialismo.
A própria ideia de analisar erros
cometidos para aperfeiçoar as decisões posteriores implica uma concepção de
história e política ausente em outras manifestações do pensamento socialista.
Supõe a existência de condições objetivas que delimitam uma gama de opções
possíveis, assim como a vontade livre, no interior dessa gama, de um operador
político. Aceitar apenas a objetividade implica recusar a possibilidade de
erros: a história leva necessariamente ao socialismo. Aceitar apenas a vontade,
atitude comum nas diferentes correntes políticas que afirmam o
"amadurecimento" completo das condições objetivas, implica dizer que
a mudança não se realiza pela ausência de intenção de líderes e partidos
políticos; não se realiza pela "traição", portanto. Traição é,
segundo o autor, a forma consequente de ver a estratégia social-democrata em um
mundo livre de restrições objetivas.
Na verdade, a social-democracia consiste
num conjunto de escolhas políticas feitas em momentos cruciais. Outras opções
eram possíveis e foram seguidas pelos "insurrecionalistas" de todos
os matizes. Essas escolhas foram:
Primeira – promover o avanço do socialismo
no interior do quadro das instituições políticas e sociais capitalistas;
Segunda – dirigir-se a um conjunto de
classes sociais e não só aos operários como agentes da mudança; e;
Terceira – dedicar-se à luta pelas
reformas parciais do sistema, de interesse imediato das classes trabalhadoras.
Esse leque de escolhas exclui,
evidentemente, a chamada "ação direta", como forma única ou
preferencial de luta, recusa o monopólio dos operários da condição de agentes
da mudança e nega o caminho que se resume a preparar um momento singular de
ruptura do sistema, como a insurreição ou a "greve geral
revolucionária".
A decisão mais importante que precede
historicamente às demais é a participação. Não se tratava de uma decisão óbvia,
até porque o direito de voto permaneceu limitado, por muito tempo, segundo
critérios de renda e propriedade. No quadro das democracias liberais de então,
os operários não votavam, e toda sua manifestação política, até aquelas que
reivindicavam o direito de voto, extravasava as instituições estabelecidas e
constituía forma de ação direta.
A questão se põe com ênfase para o
movimento no instante em que se dissipam as ilusões de uma mudança feita por
fora da política, à maneira dos socialistas utópicos, a partir de colônias ou
quistos socialistas que por simples efeito-demonstração se difundiriam,
acabando por tomar conta do corpo capitalista. Desde esse momento, é necessário
optar: ou se recusa a participação e se combatem as instituições, ou o voto é
aceito como mais uma arma do arsenal dos trabalhadores.
A questão subjacente, de forma alguma
trivial, é se a burguesia respeitaria o resultado de um processo democrático
que contrariasse seus interesses vitais.
À vitória eleitoral socialista
seguir-se-ia o golpe da reação? A dúvida perdurou por décadas, uma vez que em
1926, após seis décadas de debate, os social-democratas austríacos ainda se
sentiam no dever de alertar que respeitariam a ordem constitucional, mas que a
reação golpista da direita, caso ocorresse, seria reprimida de forma
ditatorial.
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e leia sobre a importância do voto.
De qualquer maneira, no que respeita a
essa questão, os anarquistas posicionaram-se de imediato contra sua
participação. A seu ver, a miragem das eleições domesticaria o movimento dos
trabalhadores, levando-o a abandonar seu propósito revolucionário.
A linhagem alternativa, que deu origem a
socialistas e comunistas, optou pela participação. No início, sem muita
expectativa: eleições eram vistas como terreno propício à propaganda e ao
recrutamento de novos militantes; ou, no máximo, como indicador do ânimo dos
trabalhadores para encarar a insurreição.
No entanto, a participação é mecanismo
dotado de lógica própria, que não permite meio termo. No início, os socialistas
participavam apenas das eleições; não faziam acordos relativos ao segundo turno
ou à partilha de cargos das mesas dos parlamentos. Participar em governos de
coalizão sequer era cogitado. Aos poucos, a consciência de que as regras do
jogo constitucional deveriam ser aceitas ou recusadas na íntegra levou-os a
fechar acordos, participar das mesas e, em 1924, a assumir o governo na
Grã-Bretanha. Mesmo então, esse passo foi polêmico e teve que ser justificado
com o argumento da experiência a se ganhar, necessária a um futuro governo
suficientemente majoritário, capaz de implementar o programa de mudanças.
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e saiba mais sobre os anarquistas.
Na verdade, à medida que a pura
abstenção política e a participação restrita se revelavam inviáveis, os
trabalhadores começaram a valer-se da estrutura partidária social-democrata
para atender a seus interesses particulares de classe. Afinal, no capitalismo,
os capitalistas participam diretamente das decisões relativas à economia, particularmente
no que se refere à alocação produtiva do lucro e à distribuição do excedente
entre salários e lucros. Nessas questões, "votam" todos os dias,
produzindo tendências que revelam os efeitos combinados do conjunto das
decisões individuais.
Já os trabalhadores, impossibilitados de
atingir seus objetivos de forma direta no mercado, devem recorrer a
instituições como sindicatos e partidos. Sendo assim, a democracia política e o
sufrágio universal passam a ser tratados pelo movimento operário como corretores
das disparidades distributivas que o mercado propicia.
Durante alguns anos conviveram ambas as
táticas, a institucional e a ação considerada direta. Sem dúvida, contribuiu
para a predominância da primeira opção o fato de as greves gerais deflagradas para
a obtenção dos direitos políticos, o sufrágio universal masculino, haverem sido
vitoriosas onde ocorreram, como na Bélgica e na Suécia. Ao mesmo tempo, todas
as greves gerais desencadeadas com objetivos econômicos, com potencial para
evoluir para uma situação de "greve geral revolucionária", entre o
final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, foram derrotadas, com
perdas duradouras para o movimento operário.
Nas palavras de Kautsky, teórico e
dirigente da social-democracia alemã, a própria luta econômica requer direitos
políticos e “estes não caem do céu”. Ou seja, a participação era necessária.
Tornava-se necessário ao partido organizar os trabalhadores como classe, ou
seja, organizá-los para votar como trabalhadores.
A opção pela participação envolvia
riscos. O consentimento dos trabalhadores às instituições políticas do
capitalismo poderia levar a seu fim ou apenas contribuiria para reforçá-lo? Um
claro antagonismo era percebido entre os objetivos estratégicos e táticos do
movimento: a superação do capitalismo exigia um forte movimento de massas, mas
um movimento de massas, por sua vez, exigia atenção e prioridade para
reivindicações menores e mais prosaicas, ligadas ao cotidiano do trabalhador.
Outros complicadores apresentavam-se ao
movimento social-democrata, segundo o autor. O voto coloca o eleitor na sua
condição de indivíduo, sendo uma prática política que tende, portanto, a
obscurecer o caráter de classe da ação política. O próprio instituto da
representação constituía problema na tradição do movimento, problema que a
democracia de conselhos ou comunas tendia a controlar com a eventual demissão
de representantes e com o mandato imperativo. Mesmo o surgimento espontâneo
desse tipo de democracia nas insurreições operárias conhecidas comprova a
relação tensa entre o movimento e o instituto da representação.
Por outro lado, participar regularmente
em eleições implicava, como ainda implica, construir uma máquina partidária
eficiente, com uma burocracia forte que inevitavelmente passa a preponderar nas
decisões partidárias, levando o movimento a uma tendência de aburguesamento.
Além disso, a opção eleitoral tem como consequência lógica o abandono dos
instrumentos característicos da ação direta. A continuidade do seu uso provoca
a desconfiança e rejeição do eleitor, além de fazer pesar a suspeita de
oportunismo: “voto quando somos maioria, insurreição quando somos minoria”.
Finalmente, o recurso continuado aos
instrumentos da democracia fortaleceu a tendência no movimento a considerar o socialismo
a sequência lógica da democracia, sua simples extensão para os planos econômico
e social. A democracia passa então do status de instrumento de luta, de meio,
para a consecução de um determinado fim, o socialismo, para o de um valor a ser
preservado e ampliado na nova sociedade. A revolução operária não eliminaria a
obra da Revolução Francesa, mas a terminaria.
É preciso assinalar a presença de um
elemento de cálculo estratégico na adesão do movimento operário às regras do
jogo eleitorais. Conforme a ortodoxia marxista, os operários viriam a
constituir a maioria da população, em todos os países capitalistas. Afinal,
para expandir-se, obedecendo a sua lógica imanente, o capitalismo precisava de
um número crescente de operários. O sistema criava seus próprios coveiros, na
conhecida expressão de Marx. Assim, cedo ou tarde chegaria o momento em que os
partidos operários representariam a maioria da população e contariam com a
grande maioria dos votos.
Nessa perspectiva, a questão da
insurreição perde sentido, dado que o movimento encontrava-se fadado a tomar o
poder pelo voto, em condições de sufrágio universal. Essa interpretação
encontra fundamento até em algumas passagens de Engels, que afirmam a república
democrática como a forma por excelência da ditadura do proletariado.
Os dados pareceram indicar durante muito
tempo o acerto dessas previsões. Retirados da ilegalidade e conseguido o
sufrágio universal, todos os partidos socialistas europeus viram sua votação
crescer exponencialmente, entre o fim do século XIX e a segunda década do
século XX. Entre 1905 e 1925, uma boa parte deles alcançou seu auge eleitoral, uma
maioria relativa situada em torno dos 40% dos votos.
Até esse momento, convém lembrar, esses
partidos dirigiam-se prioritária ou mesmo exclusivamente à classe operária. No
Partido Trabalhista Britânico, até mesmo a filiação individual de um membro de
outra classe foi vetada pelos sindicatos até 1918.
Havia razões de ordem teórica para essa
opção. Para Marx, a centralidade dos operários, na condição de atores políticos
da mudança, devia-se a duas razões: sua condição de classe explorada no regime,
diretamente interessada em sua superação; e sua capacidade, única fora da
burguesia, de organizar a produção.
No entanto, havia também razões de ordem
prática ao menos tão importantes quanto as teóricas.
Em primeiro lugar, a competição
econômica campeava entre os operários, assim como entre os capitalistas, e sua
superação era condição indispensável ao aumento da eficiência do conflito
contra a classe capitalista. Daí a necessidade de organizar um partido político
identificado com a classe que demandasse o voto do trabalhador na condição de
trabalhador.
Em segundo lugar, a ausência de um
partido desse tipo facilitaria, na sociedade burguesa, a integração dos
operários como indivíduos, votando conforme demandas de outra ordem –
regionais, religiosas, ou outra qualquer. Por isso era importante demarcar a
classe operária da “massa reacionária” constituída pelas demais classes.
Finalmente, o partido voltado para a
classe era necessário para superar o viés imediatista e antipolítico dos
trabalhadores, sempre interessados no confronto direto com o seu empregador,
mas desconfiados do mundo da política.
No entanto, essa concentração classista
dos partidos operários teve que ser alterada por imposição do processo
eleitoral. Com efeito, a classe operária, contrariamente às previsões de Marx,
jamais chegou a constituir a maioria estável da população em qualquer país
capitalista. Após seu momento de auge, quando, como vimos, se aproxima da
metade da população total, perto da passagem do século, a participação dos
operários, no sentido clássico do termo, na população cai constantemente. Em
1968 representavam 25% da população francesa; em 1971, 20% da população belga,
para ficar apenas em dois exemplos expressivos.
A economia havia mudado. O crescimento,
não antecipado pela teoria, do setor de serviços demandava cada vez mais
trabalhadores. A nova legislação, resultado do empenho dos socialistas, fazia
aumentar também a importância de estudantes e aposentados na população total.
Em suma, a previsão de Marx de uma sociedade no rumo da simplificação da
estrutura de classes, com uma burguesia cada vez menor e mais rica, confrontada
com uma massa operária majoritária e empobrecida, não se verificara.
A nova situação deixou aos partidos
social-democratas uma alternativa difícil. De um lado, era possível preservar a
homogeneidade social, a pureza de classe, o que implicava resignar-se à
condição de minoria eleitoral. De outro lado, também era possível ultrapassar
os limites da classe operária e dirigir o apelo político e eleitoral do partido
a outras classes e camadas da população, percebidas como aliadas conjunturais
dos operários. A soma dos votos tradicionais dos socialistas com os dos aliados
de classe permitia pensar na maioria nas eleições.
É preciso assinalar que esta última alternativa
não implica necessariamente, ao menos na percepção de dirigentes e militantes
da época, o abandono dos objetivos finais do movimento. Significava apenas
reconhecer que, ao contrário da assertiva de Marx, a emancipação dos
trabalhadores não seria obra exclusiva dos próprios trabalhadores.
De fato, à medida que a progressão
eleitoral dos partidos social-democratas estagnava, a opção pelo pluriclassismo
se impôs. Os partidos passaram a dirigir-se ao povo, às classes populares,
focalizando sua crítica num pequeno número de grandes capitalistas e
especuladores. Os limites da categoria povo eram amplos o suficiente para
abarcar perto de 90% da população desses países.
A social-democracia nunca chegou a
percentuais similares de votos. Sua estratégia atraiu parte dos membros das
classes populares, mas não todos. Paralelamente, parece haver-se estabelecido
um círculo vicioso entre o apelo à classe e o apelo ao povo. Quanto mais os
partidos modificavam seus discursos para atrair o voto de camponeses, trabalhadores
de colarinho branco, funcionários públicos, intelectuais, maior a perda de seus
votos operários tradicionais. No que parece ter sido um dos pontos culminantes
do processo, a eleição britânica de 1979, 50% dos operários votaram nos
conservadores.
A busca da maioria encontrava-se,
aparentemente, bloqueada nas duas alternativas eleitorais. A opção classista
estava condenada à maioria, dado que a classe operária tendia a perder
participação na população total. A opção popular, por sua vez, produzia uma
perda de votos antigos que contrabalançava a conquista dos novos.
Mas quais as razões desse fenômeno?
A primeira e mais evidente razão é a
concentração em objetivos comuns aos operários e outros integrantes da
coalizão. A política popular dirige-se aos interesses da maioria do povo:
operários são contemplados, não na sua especificidade de classe, mas como
cidadãos de baixa renda, usuários dos serviços públicos, consumidores e
contribuintes, por exemplo. Os interesses próprios dos trabalhadores passam a
um segundo plano.
Há uma segunda razão, de caráter menos
imediato. O discurso da opção popular interpela os eleitores como indivíduos,
solicita sua escolha numa arena política neutra, voltada para o bem comum. Esse
tipo de apelo enfraquece a identidade de classe e libera os operários a votar
conforme as exigências de outros princípios, como região, religião e outros.
Essas questões, no entanto, não foram
antecipadas pelas lideranças que encaminharam os partidos social-democratas ao
rumo do bloco de classes. Para eles, permanecia a validade do objetivo final do
movimento: a abolição da propriedade privada, fonte da irracionalidade e da
injustiça presentes na sociedade capitalista. Para eles, a luta por objetivos
específicos, de interesse das classes populares, não constituía desvio em
relação a essa meta, mas a construção do caminho que levaria a ela. O
socialismo como etapa seguinte ao capitalismo era visto como inevitável, e os
ganhos do movimento, de fundo popular ou operário, eram irreversíveis e
acumulativos. Na expressão de Jaurès, líder do socialismo francês, a transição
para a nova sociedade poderia ser comparada à passagem de um navio pela linha
do Equador: lenta, inexorável e imperceptível.
A seguir, examinaremos a feição que a
social democracia adotou a partir da década de 1930.
O
Estado do bem-estar social
É preciso ressaltar ainda que, naquele
momento, a social-democracia carecia de uma política econômica própria.
Partilhava com os partidos burgueses da crença no padrão-ouro, na necessidade
do equilíbrio orçamentário. Mesmo as iniciativas de aumento salarial eram
ponderadas com a necessidade de manter o lucro em patamares que garantissem o
investimento futuro e a geração de novos empregos. O traço diferencial dos
partidos social-democratas estava numa parcialidade distributiva em favor dos
operários, seja diretamente, seja pela via popular. As medidas distintivas
típicas eram a luta por um salário mínimo, políticas habitacionais,
seguro-desemprego, tributação progressiva sobre a renda e a herança. Todas
tiveram como resultado final a melhoria das condições de vida dos
trabalhadores.
Do marxismo o movimento herdara
basicamente os argumentos da crítica ao capitalismo. Propostas efetivas de como
proceder para sua superação resumiam-se à transferência da propriedade dos
meios de produção para a coletividade: a nacionalização. No entanto, embora o
período entre as duas guerras mundiais tenha testemunhado a ascensão de
diversos partidos socialistas ao poder, nada se fez, praticamente, no sentido
dessa grande diretriz.
Duas razões estariam na origem dessa
omissão.
A primeira razão, uma ambiguidade
conceitual quanto ao que fazer. Nacionalizar, ou seja, passar o controle para o
Estado, ou socializar, entregando a empresa à gestão dos trabalhadores que
operam aquela unidade particular de produção? Os partidos dividiram-se nessa
questão, alguns enfatizando mais o aspecto planificador da propriedade estatal
e outros o componente autogestionário. Aos olhos dos socialistas, contudo, essa
última alternativa não poderia ser vista como definitiva, pois solucionava
apenas a contradição interna à empresa, entre capitalistas e operários, mas não
o conflito entre aquela unidade e o conjunto dos consumidores.
A segunda razão encontra-se no fato de
os socialistas haverem assumido o governo na condição de minoria ou na
liderança de uma coalizão com outros partidos, contrários à política de
nacionalização. Nessa situação, impõe-se a escolha entre dois caminhos. O
primeiro é perseguir a nacionalização, o objetivo final, apesar da condição de
minoria. A derrota subsequente teria utilidade pedagógica, ensinando às massas
a identidade de seus aliados e de seus inimigos, preparando o advento de um
governo socialista majoritário. Essa posição foi implementada apenas uma vez,
em 1928, na Noruega, por um governo socialista que durou três dias. O segundo
caminho é o das reformas, o da mudança do capitalismo a prestações, até o dia
em que a maioria se volte para os partidos socialistas e as nacionalizações
possam ser efetuadas.
Essa situação de carência de uma teoria
econômica específica perdura até a década de 1930. Após a crise de 1929, uma
série de políticas anticíclicas é implementada em diversos países. Seu
fundamento teórico foi formulado por Keynes, e o caso mais conhecido é o New
Deal americano. No entanto, na mesma época, os governos socialistas da Noruega,
Suécia e França iniciavam políticas de estímulo a demandas similares.
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e saiba mais sobre o New Deal Americano.
Criou-se um novo paradigma, no qual
cabia ao Estado gerenciar o nível de demanda, seja mediante uma política de
pleno emprego, seja pelo gasto público direto em obras de qualquer espécie.
Aceitava-se um certo montante de déficit público, a economia assim aquecida
saía da crise e iniciava-se um novo ciclo expansionista. No momento posterior,
de prosperidade, procurava-se o equilíbrio das contas públicas.
A afinidade entre keynesianismo e
social-democracia foi imediata e duradoura. Essa perspectiva permitia pensar a
congruência entre os interesses particulares dos trabalhadores e os interesses
gerais da sociedade. Aumentar a renda dos trabalhadores era a receita para
fazer a economia crescer e beneficiar a todos. Os interesses populares, de
todas as classes e grupos aliados, aparentavam uma afinidade, até então oculta,
com os interesses da classe operária.
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mais sobre o mundo pós-primeira guerra
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conhecimentos sobre a Primeira Guerra Mundial, assista ao vídeo: http://bit.ly/1PoFjEX.
A assimilação do enfoque keynesiano à
política econômica dos socialistas no poder marca o início do que se
convencionou chamar Estado do bem-estar social. Não se trata mais de
implementar reformas pontuais enquanto se aguarda o momento propício à
nacionalização massiva. Criou-se, na verdade, um novo modelo, com a ambição de
domesticar o capitalismo, em benefício de trabalhadores e consumidores. O papel
ativo que o Estado passou a ter permitiria evitar a crise econômica e compensar
os danos sociais do sistema, sem necessidade da nacionalização completa da
atividade econômica.
O modelo, de grande aplicação na Europa,
após a segunda guerra, apoiava-se em três pilares. Até esse momento, convém
lembrar, esses partidos dirigiam-se prioritária ou mesmo exclusivamente à
classe operária. No Partido Trabalhista Britânico, até mesmo a filiação
individual de um membro de outra classe foi vetada pelos sindicatos até 1918.
Em primeiro lugar, a presença do Estado
como agente econômico, como provedor dos insumos fundamentais à economia, a preços
módicos. Tornou-se comum o monopólio público em setores como crédito, aço,
carvão, energia, transportes e comunicações. Todos eles estratégicos e de baixa
rentabilidade para o capital privado. Entre os poucos casos de presença estatal
em indústrias de bens de consumo, cabe citar, por sua relevância, a produção de
automóveis.
Em segundo lugar, a promoção de
políticas anticíclicas de prevenção e regulação de crises econômicas. Aqui o
Estado age como controlador da demanda, normalmente suprindo-a, mediante
geração direta ou indireta de postos de trabalho.
Clique em http://bit.ly/1H0OOe4
e saiba mais sobre Keynes.
O terceiro pilar é a construção de uma
rede de proteção que pretendia nada menos que a segurança absoluta para todo
cidadão, “do berço ao túmulo”. Integram essa rede as políticas de saúde,
previdência, assistência social, habitação, transporte, educação, assim como
todas as demais que o Estado utilize para o incremento da segurança e do
bem-estar de sua população.
A rede de segurança tem o objetivo de
sanar as sequelas sociais do capitalismo. A presença do Estado na produção e na
regulação do mercado imprimiria racionalidade a esse espaço, evitando a crise,
ao menos a crise prolongada. Os capitalistas seriam induzidos a investir os
seus lucros nos setores considerados pelo Estado como importantes para a
eficiência do sistema. No limite, operariam como funcionários da coletividade.
O modelo supõe a possibilidade de os
trabalhadores fazerem uso do Estado, em que cada pessoa representa um voto, para
corrigir as distorções do mercado, esfera na qual o peso nas decisões é
proporcional ao montante de recursos que cada um possui. A política
prevaleceria, garantindo a justiça e a eficiência que o mercado seria incapaz
de prover por períodos continuados.
A experiência da social-democracia na
aplicação desse modelo trouxe à tona suas limitações estruturais. Na verdade,
equidade e eficiência não são objetivos sempre compatíveis, mas muitas vezes
até antagônicos. Em casos de tensões e conflitos aparece a principal barreira
limitadora: a dependência da disposição do capitalista para o investimento.
O modelo depende do crescimento
econômico, este do investimento e este último, por sua vez, do lucro e da
expectativa de sua continuidade. Na hipótese de resistência ou desconfiança dos
capitalistas, estes, a rigor, não precisariam sequer conspirar contra o
governo: bastar-lhes-ia deixar de investir, para provocar em pouco tempo uma
crise desestabilizadora, de consequências fatais para o governo.
Esse o dilema que atormenta os governos
socialistas empenhados numa transição sistêmica, na superação do capitalismo
por uma nova ordem econômica e social. Qualquer passo no sentido da
nacionalização, da restrição dos mercados, retira os capitalistas da base de
apoio ao governo e gera um momento de desorganização da produção. Essa crise
tem seu ônus, em empregos e salários, e a classe trabalhadora não se mostrou
historicamente disposta a suportá-los, mesmo com o aceno de benefícios futuros
até mais substanciais.
A crise é inevitável nessa situação. Um
governo eleito com promessas de mudanças deve satisfazer as demandas dos
diversos grupos de apoio a que deve a vitória. Esse leque de demandas pode ser
atendido por um número limitado de meios: distribuição direta de renda, uso da
capacidade produtiva ociosa, gasto das reservas internacionais e redução da
taxa de lucros. Segundo Przeworski, os três primeiros sempre se mostrarão
insuficientes, de maneira que a pressão no sentido da redução da taxa de lucros
é inevitável.
Nesse momento ocorre a reação
empresarial. Obrigados pela instância política a manter salários e empregos em
montante maior que o necessário, aumentam seus preços, gerando inflação. Caso
se imponham controles diretos sobre os preços, cessa a produção e surge uma
situação de escassez. Processos com esse roteiro aproximado observaram-se na
França, em 1936; em Portugal, na Revolução dos Cravos; e no Chile de Allende.
A conclusão do autor é da
impossibilidade da mudança de sistema por meios democráticos. A perda inicial
que os trabalhadores experimentam determina a retirada de seu apoio ao governo
partidário da mudança, deixando-o debilitado para enfrentar com sucesso a
reação conservadora. A melhor solução para os trabalhadores seria persistir no
compromisso social-democrata, assegurar os ganhos possíveis em troca da
renúncia à revolução social. Afinal, somente esse modelo assegurou,
historicamente, a convivência entre capitalismo e democracia.
Ao estudar o histórico e as
características principais da social-democracia, detivemo-nos nas opções
fundamentais que levaram, com o tempo, a sua distinção em relação à corrente
socialista tradicional. Em seguida, discutimos as características principais do
produto de engenharia política que se associou à social-democracia a partir da
década de 1930 e, principalmente, no pós-guerra: o conjunto de políticas
econômicas e sociais que veio a ser conhecido como Estado do bem-estar social.
No próximo módulo vamos abordar as bases
que tornaram possível o compromisso que é esse tipo de estado: o Estado do
bem-estar social.
Esse material é compilado dos
arquivos do Curso: “Doutrina Política. Social Democracia”, do Instituto
Legislativo Brasileiro - Senado Federal.