Maquiavel
é popularmente conhecido por uma teoria política associada ao seu nome:
"maquiavelismo". O artigo realiza um esforço inicial para afastar o
pensamento maquiaveliano de semelhante concepção. Em seguida, faz uma análise
detalhada de todas as ocorrências do termo "educação", num total de
onze, na sua obra. A hipótese que orienta nossa reflexão é de que a educação é
pensada por Maquiavel como uma força destinada a controlar a desordem inerente
ao movimento tanto do desejo quanto da natureza impedindo os efeitos deletérios
daquele sobre a vida política. Graças à educação, o homem é capaz de conhecer a
"natureza das coisas", isto é, saber o que as coisas são "desde
sempre" e, desta maneira, antecipar-se ao "curso das coisas ordenado
pelos céus". Por fim, procuramos mostrar que, para Maquiavel, a educação
possibilita moldar o comportamento dos indivíduos de tal modo que é possível
redirecionar o curso das coisas para uma ordem coerente com o bem coletivo.
Acompanha
Maquiavel a (má) fama de ser pai de uma doutrina política que carrega seu nome:
"Maquiavelismo". Esta doutrina indica geralmente uma ação cínica da
parte daquele que, sem qualquer escrúpulo moral, persegue unicamente os
próprios interesses egoísticos e abomináveis. Por esta ótica, Maquiavel seria
um diabólico especialista da trapaça, um conselheiro de tiranos que querem
engrandecer a si próprios à custa do bem comum dos homens por eles governados,
um inimigo da raça humana, de toda piedade e religião, o instrumento de
Satanás. O que um pensador identificado com semelhantes ideias poderia ter a
dizer sobre educação?
Talvez
seja preciso começar desfazendo esta má-fama que acompanha o nome de Maquiavel.
É o caminho que seguiram muitos intérpretes. Didática e esquematicamente
podemos dividi-los em dois grupos principais: de um lado aqueles que recusam a
acusação por ver no florentino o autor de uma moral política severa para com a
conduta política; de outro os que excluem de seu pensamento toda referência
moral. Como exemplo da primeira perspectiva podemos citar a obra de Leonard von
Muralt; da segunda, o trabalho de Ernst Cassirer.
Segundo
Leonard von Muralt (1945, p. 67-81), Maquiavel é o adversário mais declarado do
maquiavelismo. Segundo ele, não apenas seria um equívoco chamar Maquiavel de
pai da mentira, como o florentino desaconselharia abertamente a mentir, porque não
ignoraria que a honestidade é a melhor diplomacia. Maquiavel de forma alguma
poderia ser tido como defensor da tirania, pois acolheria como forma de governo
ideal a república fundada sobre a justiça, defendida por um exército
constituído pelos próprios cidadãos e regida pela lei. Ainda segundo von
Muralt, Maquiavel não compartilharia uma ideia de virtù como
pura concentração de força e astúcia, mas a subordinaria à bontà ,
à honestidade do cidadão. Igualmente, Maquiavel não desprezaria a religião,
particularmente o cristianismo, pois a defenderia como componente
imprescindível do Estado. Estaria longe de todo historicismo e relativismo
moral, pois partilharia a ideia da existência de uma escala absoluta de
valores. Enfim, o Estado desejado por Maquiavel seria um rechte Staat:
uma república livre, igualitária e pacífica.
No
extremo oposto dos defensores de Maquiavel contra a acusação de maquiavelismo
estão aqueles que opõem ao destruidor da ética o técnico da ação, alguém que
concebe a política como uma atividade situada fora do domínio da moral,
"acima do bem e do mal". Ernst Cassirer é, talvez, o mais conhecido
dos defensores da tese de que Maquiavel é um técnico frio sem compromissos
éticos ou políticos, um analista político objetivo, um cientista moralmente
neutro e desinteressado quanto ao uso de suas descobertas "técnicas",
que podem servir tanto a libertadores quanto a déspotas.1 Para Cassirer, a atividade política
se ajustaria tanto ao Estado legal quanto ao ilegal, não sendo imoral, nem
moral. Ele simplesmente ofereceria a todos os soberanos, reais ou virtuais,
legítimos ou ilegítimos, conselhos eficazes para estabelecer e manter o seu poder,
para evitar as discórdias internas, para prevenir ou para triunfar sobre as
conspirações. Maquiavel é apresentado como o profeta da técnica em política, o
mestre do realismo amoral. O campo de preocupação de Maquiavel não seria a
política em sentido normativo, e sim esta atividade humana no sentido puramente
descritivo, de modo semelhante a um cientista social que descreve como
funcionam de fato as realidades políticas. Indignar-se diante dos meios
indicados para a fundação e conservação de Estados enunciados por Maquiavel
estaria tão fora de lugar como repreender um físico que enuncia o valor de uma
constante.
O
quadro deixa perceber que a interpretação de Maquiavel como
"maquiavélico" está longe de ser uma evidência. Tanto os que afastam
sua obra de quaisquer preocupações éticas como os que a interpretam a partir
desta chave destituem de legitimidade a leitura do maquiavelismo. Às duas
correntes extremas poderíamos acrescentar ainda aquela que, em lugar de ler
Maquiavel por estes registros, o liga às fontes do republicanismo clássico: um
pensador que defende a subordinação dos interesses particulares ao bem púbico;
que combate a tirania; que alimenta o desejo de atingir a glória e a honra para
si e para a pátria. Entre os inúmeros intérpretes contemporâneos do chamado
"republicanismo neo-romano", podemos destacar Quentin Skinner (1996).
Uma
vez afastado o "fantasma" do maquiavelismo do coração do pensamento
de Maquiavel, resta possível considerar pertinente que o florentino possa ter
algo a dizer sobre educação. Por certo é uma perspectiva muito singular que
nada tem em comum com uma "teoria pedagógica" à semelhança do que foi
comum a outros pensadores do mesmo período influenciados pelo Renascimento. Uma
constatação inicial, frustrante, é a quase completa ausência de publicações
dedicadas especificamente ao tema. No máximo encontramos abordagens que
tangenciam a questão, focadas particularmente na importância da educação cívica
para a constituição de um Estado estável, como é o caso de Skinner.
A
escassez de estudos dedicados diretamente ao tema da educação em Maquiavel
talvez deva ser tributada ao próprio autor: o termo educazione está
ausente de dois trabalhos célebres, O Príncipe e Histórias
florentinas. Já nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio ela
ocorre nove vezes, uma vez em Da arte da guerra e uma vez
em Os Capítulos - Da Ambição. No presente estudo faremos uma
análise destas onze ocorrências do termo na sua obra.
Levando
em consideração o conjunto de suas referências à educação, seria possível
identificar algo que pudesse ser uma "ideia diretriz"? Parece- nos
que o sentido real do termo educazione é captado a partir do
princípio essencial da visão maquiaveliana de que a totalidade das coisas,
naturais e humanas, é atravessada por um movimento incessante: "estando as
coisas humanas sempre em movimento, ou sobem ou descem" (DiscursosIntrodução,
II).2 Para o florentino, os homens e as
coisas são instáveis, o desejo não deixa nada em repouso. Cabe, pois, um breve
exame deste aspecto.
Para
Maquiavel, o homem é determinado, fundamentalmente, pelo dinamismo da
necessidade natural do desejo que o impulsiona incansavelmente e sem qualquer
controle interno. A característica essencial do desejo humano é sua imoderação
e desmedida. O homem é insaciável, seu desejo se dirige a tudo e sem qualquer
controle interno. Em duas passagens, e praticamente com as mesmas palavras,
Maquiavel expressa esta ideia: "sendo os apetites humanos insaciáveis,
porque tendo por natureza o poder e a vontade de desejar qualquer coisa e
por fortuna o poder de conseguir delas pouco, resulta
continuamente um descontentamento no espírito humano, e um tédio das coisas que
se possuem" (Discursos II, Introdução).3
O
desejo se mostra, assim, a mola propulsora de todas as ações humanas. Não há
desejo que não seja ativo e não há ação que não seja desejada. Mesmo quando o
homem parece estar agindo contra seu desejo como, por exemplo, quando entrega
um bem sob ameaça, ainda assim é por um desejo que age: o desejo de preservar
sua vida, que se impõe ao desejo de conservar seus bens.
O
desejo, considerado em si mesmo, é potência presente. É sempre num agora e aqui
que o homem deseja. Maquiavel aponta para a ambivalência inerente à própria
estrutura do desejo: ele é potência, mas limitada; ou seja, "a natureza
criou os homens de maneira que podem desejar qualquer coisa, mas não podem
conseguir qualquer coisa" (Discursos I, 37). Desejamos tudo,
porque não somos tudo, não somos Deus. Sempre nos falta algo. Assim, o desejo,
como força finita, é vivido como carência infinita. Ele nada mais é do que a
afirmação de uma força em seu esforço sem fim para durar e aumentar.
O
desejo é sempre particular. É sempre um sujeito individual que deseja algo para
si. É, pois, singular e tem em vista o interesse próprio. É devido a esta
característica que o desejo opõe os homens entre si. Quer dizer, pelo fato de o
desejo ser singular, ao satisfazê-lo se contrapõe ao desejo do outro. Assim, os
homens se opõem entre si não porque são malvados, mas porque são rivais na
consumação de seus desejos.
Além
do fato do desejo, que coloca todas as coisas em contínuo movimento,
notadamente aquelas que dependem da vontade humana, deve-se ter em conta que
todos os corpos cumprem um ciclo vital que é determinado pela própria natureza.
O ciclo vital da natureza é marcado pelas etapas pelas quais todo ser vivo
passa: nascimento, desenvolvimento e morte. É assim na natureza vegetal e
animal (corpos simples), mas é também do mesmo modo nos Estados e religiões
(corpos mistos). Ambos, corpos simples e mistos, são regulados pelos mesmos
fenômenos de saúde e doença. A "natureza" do corpo misto é semelhante
a do corpo simples. "Natureza" para Maquiavel é princípio de movimento
que emerge do fundo de cada ser: "a natureza, como os corpos simples,
quando acumularam muita matéria supérflua, se move muitas vezes por si mesma e
se purga dela, o que lhes devolve a saúde; [o mesmo sucede] neste corpo misto
da geração humana" (Discursos II,5). A natureza como princípio
do movimento entendido como variação é para Maquiavel uma verdadeira lei
objetiva, "lei natural". Lei natural é "o curso das coisas
ordenadas pelos céus" (Discursos III,1). O termo final
necessário do curso das coisas é a degeneração: "nada é mais certo do que
o fato de que todas as coisas do mundo têm um final" (Discursos III,1).
Temos,
pois, duas ordens de movimento: aquele que emerge do desejo e o que brota da
natureza. Ambos, caso se permita que sigam livremente o curso que lhes é
próprio, levam à desordem: o desejo, não submetido ao controle da lei, causa a
anarquia e a dissolução do vivere civile; a natureza, que segue um
movimento "por necessidade", culmina na degradação definitiva de toda
ordem visível.
A
educação é pensada por Maquiavel como uma força destinada a controlar a
desordem inerente ao movimento tanto do desejo quanto da natureza.
Evidentemente, a educação não é capaz de conter o movimento. Afinal de contas,
tanto o desejo quanto a natureza são propulsores de um movimento
"necessário", quer dizer, inerente às coisas. Apesar disso, pode
"ordená-lo" impedindo os efeitos deletérios à vida política. Graças à
educação, o homem é capaz de conhecer a "natureza das coisas", isto é,
saber o que as coisas são "desde sempre". Bem entendido, este
conhecimento não é, para Maquiavel, uma descoberta da "essência"
metafísica das coisas, e sim um saber sobre aquilo que há de permanente e
regular no modo como elas ocorrem. Entendendo o movimento das coisas, o sujeito
torna-se capaz de se antecipar ao "curso das coisas ordenado pelos
céus". Significa dizer, pela educação o homem será capaz de manejar a
realidade com maior facilidade para controlá-la e dirigir seus esforços no
sentido de obter êxito. Por fim, a educação possibilita moldar o comportamento
dos indivíduos de tal modo que o curso das coisas se redirecione para uma ordem
coerente com o bem coletivo. Na sequência faremos um exame das passagens nas
quais Maquiavel refere-se à educação para mostrar como ela promove esse
conhecimento.
Comecemos
pelos Discursos, obra na qual Maquiavel menciona o maior número de
vezes a educazione. A primeira referência pode ser encontrada já na
Introdução ao Livro I. Lamentado a negligência dos contemporâneos de servir-se
das lições da história para a condução política, diz estar convencido de que a
causa dessa falha
[...]
procede menos da fraqueza (debolezza) à qual a educazione atual
conduziu o mundo, ou do mal que um ambicioso ócio causou às muitas províncias e
cidades cristãs, do que não haver um verdadeiro conhecimento da história e de
não extrair dela, ao lê-la, seu sentido, nem experimentar do sabor que encerra.
(Discursos I, Introdução)
Fica
evidente a intenção de contrapor a uma leitura meramente contemplativa uma
interpretação ativa e utilitária, a qual visa extrair lições do passado para
aplicá-las ao presente e futuro, convertendo a história em instrumento de
educação. Se os homens de Estado não se utilizam da história como mestra da
vida, isso não se deve tanto a uma fraqueza da educação do que ao fato de
enxergar na história nada mais do que um conjunto de fábulas maravilhosas.
Somente um olhar guiado pela verdade poderá desvelar o sentido do útil. A culpa
maior da educação reside em outra coisa: haver conduzido o mundo atual à
"fraqueza" (debolezza). Esta fraqueza está associada ao
"ócio". O ócio aparece em Maquiavel em três acepções distintas: como
inércia (ou preguiça) que se opõe à energia (ou virtù); como
licenciosidade decorrente da ausência de controle por oposição à força
disciplinadora da necessidade; como a situação que oferece um excesso de
possibilidades de escolha: o ócio torna os homens mais lentos em lhes oferecer
uma quantidade de alternativas. A concepção maquiaveliana do ócio revela a
influência que exerceu sobre ele o humanismo renascentista, que atribui um
lugar secundário à contemplação (otium) e subordinado ao ideal da vida
ativa (negotium). Na avaliação de Maquiavel, o ócio degenera os costumes
e corrompe a vida política: "as razões da desunião das repúblicas, na
maioria das vezes, são o ócio e a paz" (Discursos II,25).
A
crítica à educação como promotora da debolezza será retomada
por Maquiavel em outros dois momentos, sempre utilizando o mesmo termo para se
referir aos efeitos produzidos pela educação nos seus dias. Assim, referindo-se
aos seus contemporâneos, afirma: "Mas a fraqueza (debolezza) dos
homens de hoje, causada por sua fraca (debole) educazione e
da pouca informação sobre as coisas, faz com que julguem os julgamentos dos
antigos em parte desumanos, em parte impossíveis" (Discursos III,
27).
Assim
como no fragmento anterior, também neste Maquiavel aborda a negligência dos
contemporâneos de servir-se do ensinamento dos antigos para orientar as ações
políticas. Na passagem em questão, Maquiavel discute em torno da estratégia
mais adequada para a unificação de um Estado dividido por facções rivais e
aponta três alternativas: exterminar os culpados; bani-los; ou fazer as pazes com
eles. Mostra que, embora a segunda alternativa por vezes funcione (como no caso
dos florentinos em relação à Pisa), o meio mais seguro é o primeiro. Por que,
então, não é adotado presentemente pelos chefes políticos? A resposta está na
passagem citada: o motivo está na debolezza dos homens e
na debole educazione que faz com que eles considerem as lições
dos antigos desumanas ou impossíveis.
A
crítica maquiaveliana à educação dos modernos tem seu contraponto positivo no
exemplo dos antigos romanos e é por esta razão que propõe a imitação destes
como forma de recuperar a virtù perdida pela corrupção
presente. De que "virtude" se trata? Trata-se da virtude cívica que
corresponde não a uma qualidade moral do indivíduo, e sim à virtude cívica
ligada à "[...] concepção clássica dos romanos que a identifica com
qualidades tais como: simplicidade de costumes, moderação, coragem,
patriotismo, disponibilidade a sacrificar-se pelo bem comum, etc."
(PINZANI, 2006, p.97). Estas qualidades não são apropriadas ao aperfeiçoamento
moral dos indivíduos, como é o caso na virtude cristã, e sim estão destinadas a
formar um bom cidadão. Não formam um "homem bom", mas um "bom
cidadão". Quais qualidades identificam um "bom cidadão" na
concepção maquiaveliana? Em primeiro lugar, a subordinação do bem particular ao
bem comum. A virtude cívica desenvolve nos homens à capacidade de servir a
pátria até com a própria vida, se necessário. Em segundo lugar, à coragem: o
cidadão dotado de virtude cívica não teme defender a cidade ou expandir seus
domínios sempre que isso se mostra necessário para conservá-la livre. Em
terceiro lugar, à religiosidade: o bom cidadão é temente a Deus o que faz com
que respeite os preceitos legais como se fossem mandamentos divinos. Em quarto
lugar, à repugna ao ócio: o ideal de homem está vinculado à vida ativa e
produtiva e não à contemplação e meditação, como é para o pensamento
medieval-cristão.
A
virtude cívica está intrinsecamente vinculada à educação. Não são qualidades
que o homem porta por nascimento, mas são cultivadas nele através de um
processo formativo. A educação pode tanto formar homens dotados das virtudes
imprescindíveis para ser um bom cidadão quanto pode fazer dele uma pessoa fraca
e arrogante. De alguma maneira os homens são o que a educação fez deles. Ela
molda o modo de ser dos homens:
Tornar-se
insolente na boa fortuna e desprezível na má nasce do modo do teu comportamento
e daeducazione na qual foste criado; esta, se é fraca (debole)
e vã, te torna semelhante a ela; se é oposta, te torna também de outro tipo e,
tornando-te melhor conhecedor do mundo, te fará alegrar-te menos do bem e
entristecer-te menos do mal. (Discursos III,31)
A
maneira como o homem encara o mundo é desenvolvido por meio da educação.
Maquiavel recusa todo determinismo natural ou de qualquer outro gênero. Cada um
é aquilo que a educação fez dele. Ser "fraco" ou ser
"forte", isto é, ser determinado e corajoso ou débil e resignado, não
é uma determinação natural, mas cultural; não é uma qualidade inata, mas
cultivada. O fragmento não deixa lugar a dúvidas: a educação molda o
comportamento dos indivíduos incutindo neles princípios e regras de conduta que
determinam o modo como enfrentam o mundo. Dependendo da educação, os homens
serão capazes unicamente de seguir o curso da fortuna. Mais ainda: pode
levá-los identificar a "boa fortuna" com o talento, tornando-os
"insolentes" no sucesso e desprezíveis no fracasso; quer dizer: pode
fazer com que os homens imaginem que o êxito momentâneo é prova de sua capacidade
e não fruto do acaso. Uma educação "fraca" incute nos homens ideias
"vãs". Vãs são para Maquiavel ideias que levam o homem a uma atitude
resignada frente ao mundo, que elevam o ideal da contemplação em lugar da ação,
que cultivam o ócio em vez da virtù.
Esse
argumento encontra seu fecho em outra passagem na qual Maquiavel compara a
diferença de conduta entre antigos e contemporâneos, desta vez para estabelecer
a causa da presença de maior amor à liberdade nos primeiros do que nos últimos:
Pensando
de onde pode provir que naqueles tempos antigos os povos fossem mais amantes da
liberdade do que nestes, creio que procede da mesma causa que faz os homens de
hoje serem menos fortes (manco forti), o que creio estar na diferença da
nossa educazione em relação à antiga, fundada na diferença
entre a nossa religião e a antiga. (Discursos II,2)
A
razão de os homens de hoje serem manco forti do que os antigos
está na diferente educazione de uns e outros. Novamente,
a debolezza dos homens provém da forma como são educados. Se
os romanos eram povos fortes e corajosos não se deve a alguma qualidade
peculiar à sua constituição física. Não existem povos etnicamente superiores em
força e energia do que outros. Eles se distinguem entre si unicamente através
de qualidades cultivadas pela educação. A virtude pode tornar um povo grande,
não o acaso (fortuna). A virtude é ensinada; a fortuna é
fortuita. Consequentemente, qualquer povo que tiver o mesmo apreço que os
romanos pela virtude cívica pode chegar ao ponto que eles chegaram.
No
fragmento acima Maquiavel se refere explicitamente à influência da religião na
determinação do comportamento dos homens. A religião dos antigos fornece um
"conteúdo" essencial ao processo formativo: o amor à liberdade. A
fraqueza dos modernos e a exemplaridade dos antigos têm seu fundamento na
diversidade radical de suas religiões e do conteúdo delas. Significa dizer que
o mundo moderno tornou-se politicamente impotente por causa da religião cristã
assim como o mundo antigo havia fundado sua exemplaridade sobre as qualidades
específicas da religião pagã que lhe era própria. A primeira é mestre do ócio;
a segunda da virtù.
Esta
ideia é explicitada logo na sequência da passagem citada, quando Maquiavel
argumenta que a liturgia do paganismo, diferente do aspecto humilde e delicado
da cristã, era constituída de sacrifícios sangrentos "[...] e este
espetáculo, sendo terrível, modelava os homens à sua
imagem." (Discursos II,2 - grifo meu). A educação forma nos
indivíduos hábitos que moldam suas condutas. A liturgia cheia de atos de
ferocidade cultivava nos homens o espírito de fortaleza, de luta obstinada e de
apego a este mundo, atitude bem oposta à fomentada pelo cristianismo,
"[...] que glorifica mais os homens contemplativos do que os ativos".
Assim, enquanto o sumo bem para o cristianismo está "[...] na humildade,
na abjeção e no desprezo das coisas humanas", para os antigos está
"[...] na grandeza de espírito, na fortaleza do corpo e em todas as coisas
capazes de tornar os homens fortíssimos." (Discursos II,2). A
consequência dessa educazione para a debolezza própria
ao cristianismo é esta: "se nossa religião pede que tenhas fortaleza, quer
dizer que sejas capaz de suportar e não de praticar um ato forte" (Discursos II,2).
Esse modo de se comportar, conclui Maquiavel, "[...] parece que tornou o
mundo debole e o converteu em presa dos homens
criminosos." (Discursos II, 2).
É
esse ponto que Maquiavel pretende ressaltar: as religiões não são inocentes em
relação à sorte dos homens neste mundo. Elas incutem ideias que são assumidas
como valores absolutos e, desta maneira, determinam o destino humano. O
cristianismo, acusa Maquiavel, esvaziou do seu conteúdo real a ideia de
"força" espiritualizando-a. Para o paganismo, "força"
significava coragem e destemor para resistir ao inimigo, para lutar em defesa
da pátria, para proteger a liberdade da cidade. Para o cristianismo,
"força" é uma disposição interior para resistir aos desejos de glória
e de grandeza mundana.
Quando
o cristianismo esvazia o sentido originário dos valores ele condena os homens a
serem vítimas de facínoras que não temem usar da força real, a força física,
para submetê-los e dominá-los. A educação promovida pelo cristianismo, porque
estimula a resignação, piedade e a fuga do mundo, é responsável pelo triunfo da
tirania sobre a liberdade, de "[...] fazer com que não existam no mundo
tantas repúblicas como antigamente e, por conseguinte, não se veja nos povos
tanto amor à liberdade como naquela época." (Discursos II, 2).
Além
dessa sequência de passagens em que Maquiavel se refere à educação como
responsável pela debolezza da Itália daquele tempo e insiste
na necessidade de espelhar-se nos exemplos dos antigos para recuperar a virtùperdida,
apresenta outras em que ressalta a educação como força indutora de
comportamentos desejáveis. A educação é uma atividade que desenvolve a virtù levando
os homens à conduta adequada em relação às finalidades últimas da existência
coletiva.
Uma
primeira passagem nesta perspectiva é a que encontramos no começo dos Discursos.
Opondo-se aos seus contemporâneos, que criticavam os tumultos que agitavam a
república romana antiga, Maquiavel defende:
Não
se pode chamar de modo algum com razão desordenada uma república onde existem
tantos exemplos de virtù, porque os bons exemplos nascem da
boa educazione, a boa educazione das boas leis e
as boas leis daqueles tumultos que muitos inconsideradamente condenam. (Discursos I,4)
Maquiavel
acentua o condicionamento recíproco entre a boa educação e as boas leis.
"Boas leis" devem ser entendidas em sentido amplo compreendendo
também as instituições estatais. A boa educação corresponde à virtude cívica
que, vimos acima, diz respeito a qualidades como a simplicidade de costumes,
moderação, coragem, patriotismo, disponibilidade de sacrificar-se pela pátria.
Maquiavel ressalta aqui que a lei sem a virtude cívica promovida pela boa
educação não produz efeito; a virtude cívica sem boas leis, por sua vez, é
privada de finalidade.
Tão
importante quanto o condicionamento recíproco entre educação e lei, é a
circularidade entre os quatro elementos presentes no fragmento acima: exemplos,
educação, leis e tumultos. O inovador no argumento de Maquiavel é a vinculação
do surgimento das leis aos tumultos. Este raciocínio, porém, não autoriza a
concluir que haveria um nascimento espontâneo das instituições, que faria da
ordem da lei a solução automática da desordem dos dissensos de uma vez para
sempre. Pelo contrário, por um lado os tumultos somente são férteis pelo perigo
que representam e, portanto, o Estado sempre corre o risco de se arruinar; por
outro lado, é sempre possível que as dissensões acabem em lutas partidárias que
visam unicamente os interesses de seus chefes, como em Florença (História de
Florença VII, 1-2); ou então degenerem em guerra civil, como foi o
caso de Roma em decorrência dos desdobramentos das discórdias em torno da Lei
Agrária (Discursos I, 37). As dissensões não são, pois, sempre
boas. A consequência dessa constatação é a exigência de que as leis tenham já
modelado a desordem. Com esta posição Maquiavel consegue resolver o dilema com
o qual o confrontavam os críticos dos tumultos romanos. Com efeito, se existe
uma pura desordem antes da ordem instaurada pela lei, então esta é apenas
contingente e a grandeza de Roma deve ser atribuída unicamente à fortuna.
Maquiavel descarta, porém, decididamente este argumento: "Não posso negar
que a fortuna e a milícia foram razões do império romano, mas também me parece
que quem diz tais coisas não se apercebe de que onde há boa milícia é preciso
que haja boa ordem, e raras são as vezes em que deixa de haver também boa
fortuna" (Discursos I, 4). Por outro lado, Maquiavel não pode
nem negar a desordem sobre a qual a ordem se apoia, nem apelar a uma ordem
superior que antecederia à desordem, pois descartou a tese do primeiro
legislador virtuoso, como foi Licurgo em Esparta.
A
força do argumento maquiaveliano está na circularidade: os tumultos romanos não
devem ser condenados como pura desordem, porque não prejudicam a virtude. Os
exemplos romanos provam que a virtude nasce da boa educação, esta das boas leis
que, por sua vez, se originam dos tumultos. Em outras palavras, os tumultos não
engendrariam boas leis se eles mesmos já não estivessem marcados pela virtude
que dispensa estas leis. A desordem permite a ordem na medida em que a ordem já
sempre antecede à desordem, mas sem impedi-la.
É,
pois, efetivamente um círculo que faz com que a lei, nascendo dos dissensos,
seja ao mesmo tempo aquela que deve mantê-los sob vigilância, modelá-los, de
sorte que permaneçam férteis; plenos desta forma de virtù que
faz com que as inimizades que nascem deles produzam necessidade e não ambição.
Enquanto os desejos são "coagidos pela necessidade," as inimizades
permanecem sãs e culminam em leis justas. Quando, porém, se "começa a
combater por ambição", prevalece o uso de meios privados no interesse de
uma só pessoa, família ou facção cujo resultado final é a destruição da
república.
A
mesma função modeladora dos costumes é atribuída à educação em outra passagem:
No
caso de homens acostumados a viver em uma cidade corrompida, onde a educazione não
tenha despertado neles nenhuma virtude (bontà ), é impossível que
por alguma circunstância recuem em suas decisões, e para realizar sua vontade e
satisfazer a perversidade de seu espírito estariam contentes em ver a ruína da
sua pátria. (Discursos III,30)
No
capítulo em questão, Maquiavel trata dos prejuízos que o "vício da
inveja" pode causar ao bem público. Situa a educação como remédio a esse
vício na medida em que é capaz de despertar alcuna bontà na
mente dos homens. Quando falta essa bontà , os homens são
capazes até mesmo de se alegrar ao ver a ruína de sua pátria. Chama a atenção o
fato de Maquiavel conferir à educação e não à lei a força capaz de conter a
derrocada do Estado. Parece que a lei só é eficaz em um Estado no qual
prevalece a virtude. Quando esta se corrompe, a lei perde a capacidade de
constranger a conduta dos homens.
Para
Maquiavel, o ideal de perfeição do homem se alcança quando consegue colocar o
interesse público acima do privado. Como a natureza passional do homem tende ao
contrário, a educação desempenha um papel fundamental no sentido de refrear os
impulsos egoístas levando-o a agir pelo bem público, mesmo quando suas ações
rendem glória aos outros.
Na
última referência à educação presente nos Discursos, Maquiavel
enfrenta a questão: como explicar a diferença entre as condutas individuais e
dos grupos? Ele remete a resposta à educação:
Isto
[a diferença entre as famílias] não pode provir unicamente do sangue, pois este
se mistura através dos diferentes casamentos, mas é necessário que resulte da
diferente educazione de uma e outra família. O que importa
muito é que uma criança desde os primeiros anos comece a ouvir falar bem ou mal
de uma coisa, pois necessariamente receberá disso impressões e destas extrairá
regras sobre o modo de proceder durante toda a vida. (Discursos III,46)
A
educação age diretamente sobre indivíduos (e não grupos). Para
Pinzani (2006, p.96), "[...] obviamente Maquiavel pensa in primis nos
indivíduos: é a ambição destes que deve ser contida, é o amor à pátria destes
que deve ser atiçado, é o egoísmo destes que deve ser superado, é o interesse
pelo bem comum destes que deve ser despertado". Contudo, alerta o
intérprete, estes indivíduos não vivem isolados, mas constituem famílias e
formam um povo. É como membros de grupos que apresentam características
inconfundíveis que se transmitem de uma geração a outra: "parece que entre
uma cidade e outra certos modos e instituições diferem, criando homens mais
duros ou mais efeminados. Contudo, na mesma cidade, percebe-se que tal
diferença está nas famílias, que diferem uma da outra" (Discursos III,
46). Assim, continua Maquiavel, algumas são "duras e obstinadas",
outras "benignas e amantes do povo"; outras ainda "ambiciosas e
inimigas da plebe".
As
diferenças entre os grupos humanos (famílias e povos) são determinadas não por
fatores genéticos ("de sangue"), mas pelo costume fixado através da
educação. A educação forma e modela determinado conjunto de caracteres
singulares que se incorporam ao modo de ser dos indivíduos que pertencem a
certo agrupamento humano a ponto de se naturalizarem. Paradoxalmente, a mesma
força (a educação) que modela algum agrupamento humano a ponto de parecer
imutável é também aquela que possibilita romper esta cristalização. Assim, ao
mesmo tempo em que tudo parece previsível, pois dá a impressão de uma
determinação plena dos comportamentos humanos em virtude dos valores inculcados
no indivíduo desde a mais tenra idade, constatamos igualmente que a mesma força
que moldou o comportamento é capaz de transformá-lo.
Com
esta constatação retornamos à questão inicial: tudo está submetido à contínua
mudança. Esta é fator de desordem. A ordem brota do esforço de regulação em que
a educação desempenha função decisiva. A educação molda comportamentos, fixa a
conduta em um caráter que se constitui para o indivíduo em uma espécie de
segunda natureza. No entanto, por mais estável que tudo pareça, a própria
educação que, por assim dizer, "cristalizou" o comportamento numa
direção, pode romper a estrutura fixada e colocá-la em movimento outra vez.
Na
referência à educação em Da arte da guerra Maquiavel acentua
igualmente esse aspecto da formação moral do qual a educação está encarregada.
Descrevendo, pela boca de Fabrício, as qualidades do soldado, pondera:
Acima
de tudo, deve-se atentar para os costumes e que ele [o soldado] seja honesto e
dotado de pudor, caso contrário se escolhe um instrumento de escândalo e um
princípio de corrupção. De fato, não é possível esperar que exista alguma virtù de
algum modo louvável em um homem que creia numaeducazione desonesta
e tenha um espírito embrutecido. (Da Arte da Guerra, livro I)
O
argumento de Maquiavel é de que os cidadãos são a defesa mais segura de um
Estado. Por isso, sua crítica severa à utilização das forças mercenárias e
auxiliares. A posição de Maquiavel favorável a um exército cidadão certamente
não é bem interpretada se a reduzirmos à pura eficácia. Chabod, por exemplo,
parece-nos que cai nesse equívoco, pois sustenta que Maquiavel não percebeu
que, "[...] precisamente naqueles tempos, o mercenarismo militar supunha
uma necessidade absoluta para os monarcas, dedicados a criar trabalhosamente os
estados nacionais" (CHABOD, 1994, p.86). A insistência de Maquiavel na
formação de um exército próprio decorre de sua concepção política: nenhum
Estado alcança a grandeza sem um exército forte constituído a partir de seus
cidadãos. A formação de um exército popular pode gerar nos cidadãos um conjunto
virtudes essenciais à vida política: patriotismo, sentido de responsabilidade,
solidariedade. Enfim, a educação para a vida militar forma no fim das contas o
"bom cidadão": renúncia ao interesse próprio em favor do público,
espírito de sacrifício, inclusive de morrer se necessário, moderação e cultivo
de uma vida simples e sem luxo, sem ócio e costumes corrompidos.
Finalmente,
a última das onze referências na obra de Maquiavel à educazione que
nos falta comentar, presente no Capítulo - Da Ambição, volta o tema
da força modeladora. Dessa vez, é conferida à educação uma energia capaz de
suprir aquilo em que a natureza é falha:
E
se alguém culpasse a natureza/ porque na Itália, tão aflita e cansada,/ não
nascem pessoas tão corajosas e obstinadas,/ digo que isto não desculpa e livra/
a nossa covardia, porque a educazionepode suprir/ onde a natureza
falha. (I Capitoli - Dell'Ambizione, vs 109-114)
Dentre
todos os fragmentos analisados, este parece o mais expressivo em relação à
capacidade modeladora da educação, inclusive em relação à natureza. Maquiavel
sugere que ela tem a possibilidade de "preencher" as lacunas deixadas
em aberto pela natureza. Esta última deixa de ser uma força inexorável para se
transformar em matéria moldável pela educação. A natureza pode ser recriada, ao
ser moldada pela educação, de acordo com as finalidades colocadas pela
coletividade. Nada está definitivamente dado, sequer o que parece ser assim: a
natureza.
Com
esta posição, o pensador florentino dirige uma crítica severa aos seus conterrâneos,
que pretendem desculpar-se pela divisão e desordem reinantes apelando a fatores
que parecem incontroláveis como a natureza. O raciocínio dos conterrâneos de
Maquiavel parece ser este: se a Itália está nesta situação caótica é porque foi
preterida por alguma força sobrenatural em relação às demais nações fazendo com
que não surjam homens "corajosos e obstinados"; a natureza foi
ingrata com eles. Maquiavel, opondo-se a esta visão fatalista das coisas, faz
recair toda responsabilidade sobre os próprios italianos. Nada "desculpa e
livra nossa covardia": a divisão e desordem reinantes são fruto de
decisões políticas equivocadas e não de uma natureza ingrata. "Coragem e
obstinação" não são presentes dos céus. São frutos de uma educação para a
cidadania que cultiva nos homens as virtudes imprescindíveis para a vida
política. Estas qualidades não são boas em si ou porque podem ser instrumentos
para o aperfeiçoamento moral dos indivíduos, mas porque fazem com que os homens
sejam capazes de assumir a vida política como tarefa sua.
Podemos
dizer que as virtudes cívicas cultivadas pela educação fazem de alguém um bom
cidadão e não um homem bom. Um "bom cidadão", para Maquiavel, é
alguém com hábitos de vida simples, coragem, patriotismo, disposição ao
sacrifício pelo bem comum, etc. Um "homem bom", por sua vez, é aquele
que possui um conjunto de qualidades morais em grau de excelência, tais como
honestidade, senso de justiça, retidão de caráter, piedade, etc. Não há relação
necessária entre as duas "bondades": é possível ser honesto, íntegro,
justo, fiel e, no entanto, ser incapaz de sacrificar-se pelo bem público, de
assumir os encargos públicos como tarefa sua. Se Maquiavel se interessa pelo
"bom cidadão" e não pelo "homem bom" não é porque considera
irrelevante o último, e sim porque, como pensador político e não teórico da
moral, se preocupa com as condições de possibilidade para o estabelecimento de
uma república estável e duradoura. As virtudes morais não têm valor em si, mas
são relevantes na medida em que contribuem ou prejudicam a formação do bom
cidadão.
Encaminhando
nossa reflexão para a conclusão, podemos dizer que Maquiavel não refletiu sobre
a educação na perspectiva de um "pedagogo" que oferece uma nova
"teoria da educação" aos seus leitores. Escreveu numa perspectiva
renascentista, que afirma o homem ativo e não o contemplativo como era a
perspectiva dominante na tradição medieval-cristã. A partir de suas reflexões
emerge um posicionamento que, mesmo não constituindo uma "pedagogia",
oferece um conhecimento e observação dos costumes da vida social que revela uma
clara ideia da educação como método próprio para assegurar a formação e o
desenvolvimento físico, intelectual e moral imprescindíveis para assumir a vida
política como tarefa de cada um.
Primeiramente,
entende a educação como aquilo de que é permeada a matéria social. A educação é
o condicionamento psicológico e moral que determina a vida humana individual e
coletiva. É o conjunto de pressupostos teóricos, de juízos e convicções de toda
ordem que regulam a vida dos cidadãos. Ela "forma" o cidadão ao
inculcar nele a virtù cívica: o amor à pátria, a dedicação ao
bem público, a subordinação do bem privado ao bem público. Está explícita aqui
uma moralidade: Maquiavel condena como vício o ócio, a inveja, a ingratidão, o
egoísmo e tudo aquilo que impede o homem de engajar-se na defesa da liberdade
como bem coletivo. Importante frisar que estas qualidades são importantes
porque contribuem para a estabilidade e permanência da república e não porque
são atributos bons por expressarem a perfeição moral de um indivíduo.
Um
segundo aspecto refere-se ao caráter intrinsecamente mutável de todas as coisas
e a tarefa da educação na modelação do comportamento humano. A ação política,
por estar inscrita no tempo, precisa "inventar" seu que fazer no
instante mesmo em que se efetiva. Não existe teleologia inscrita na história.
Como proceder para que este agir não seja destituído de rumo? Como é possível
conhecer o "curso das coisas"? Como acertar nas decisões políticas? A
condição na qual o homem de ação se encontra, no campo político, requer dele a
faculdade não somente de "saber", mas de "saber prever" e,
a partir destes dois "saberes", a capacidade de
"saber-fazer", isto é, de estabelecer estratégias de ação voltadas ao
êxito. A educação vem em socorro dessa necessidade. A história ensina que o
comportamento humano é determinado por condutas que se repetem ao longo dos
tempos, produzidas pelo condicionamento promovido pela educação. A educação
molda o comportamento ao estimular os indivíduos a praticar valores e
princípios. O estudo da história torna-se vital para conhecer esses modos de
vida que se repetem, pois possibilita a previsão e a antecipação. É a razão
pela qual Maquiavel insiste na necessidade da imitação dos antigos, pois neles
estão modelos de conduta que se reproduzem na história e que, uma vez
conhecidos, prestam-se para formular modos de ação voltados ao êxito.
Enfim,
Maquiavel estabelece uma relação muito estreita entre a moralidade cívica e a
vida política saudável: sem bons costumes não existem Estados solidamente
instituídos. Por esta razão, quando os costumes se corrompem segue inevitavelmente
a decadência política. Desta maneira, a moralidade dos cidadãos, compreendida
como o cultivo das virtudes cívicas, não é um fator entre outros para a
continuidade dos Estados, mas é o fator por excelência. É mais importante do
que as próprias leis, pois onde falta a virtude cívica, as leis se mostram
impotentes para restaurar a vida política.
Fonte: José Luiz Ames
Doutor em filosofia e professor associado do Departamento de
Filosofia da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)
Odemir
Silva
Ciências
Política