sábado, 9 de novembro de 2013

INICIAÇÃO FILOSÓFICA E O PROFESSOR POLIVALENTE



Por Guilherme Szymanski Ribeiro Gomes

A pertinência da disciplina Filosofia no Ensino Fundamental é uma questão que, há algum tempo, vem sendo objeto de estudo de pesquisadores ligados às áreas de Educação e Filosofia. A partir de tais pesquisas, é possível afirmar o valor formativo da disciplina em questão: ao trabalhar com conteúdos usualmente considerados filosóficos (amor, justiça, o belo, o bem, o certo, entre outros), ajuda a compreender o que é ser humano; ademais, o próprio modo filosófico de pensar pode ser de grande valia, por ser reflexivo, profundo, sistemático e abrangente (cf. Saviani, 1996). O presente texto não tem como objetivo fundamentar a pertinência ou não da disciplina Filosofia no Ensino Fundamental, mas sim, apontar algumas possibilidades para o professor polivalente conduzir suas aulas almejando aquilo que Lorieri (2002) chama de uma iniciação filosófica. Para realizar a supramencionada iniciação filosófica, é imprescindível desenvolver ao menos dois elementos durante as aulas.
O primeiro consiste em dar continuidade e exercitar a natural capacidade da criança de se admirar com o mundo que a cerca, tirando proveito do instintivo desejo dela em querer compreender e dar sentido às coisas. A segunda condição para uma iniciação filosófica compreende o estabelecimento de uma dinâmica essencialmente dialógica como prática rotineira. É comum o uso do diálogo ser considerado pertinente apenas para as disciplinas da área de Humanidades, como se sua aplicação em um processo de investigação em outras áreas do conhecimento não fosse tão frutífera ou adequada. Uma investigação por meio do diálogo, como será visto ao longo desse texto, acaba trazendo uma série de benefícios que extrapolam a simples aquisição de um determinado conteúdo.
Em relação ao primeiro elemento da investigação filosófica, a manutenção da admiração da criança com o mundo, é recomendável um esforço do professor para perceber e enfrentar as questões que os alunos trazem. Não são raras as situações em que as crianças se interessam pelos mesmos problemas que a Filosofia, ao longo da história, vem enfrentando: o que é o certo e o errado, o justo e o injusto, o belo e o feio, o que é o real, o que é o mundo, o que é ser gente, o porquê das regras. E muitas vezes  tais questões problemáticas são postas de lado como se fossem menos importantes que o conteúdo planejado. Ou pior: respostas prontas são oferecidas ao aluno, encerrando qualquer possibilidade do mesmo resolver ou recriar alternativas ao problema. Se o processo educacional almeja, entre outras coisas, formar cidadãos autônomos e responsáveis, é no mínimo contraditório que tal atitude seja levada adiante.
Os filósofos norte-americanos Matthew Lipman e Ann Sharp (1984) afirmam que o deslumbramento das crianças em relação ao mundo é tão profundo que se o mesmo acontecesse com adultos, tal atitude seria qualificada como religiosa. No entanto, essa capacidade vai diminuindo com a chegada da vida adulta, pois os adultos tentam controlar o universo cunhando verdades (científicas, lógicas, matemáticas) - abafando esse saudável impulso ao questionamento.
Nesta perspectiva, a necessidade de adotar uma prática reflexiva em sala de aula que contemple os questionamentos das crianças torna-se algo urgente, uma vez que aquilo que está em jogo não são as convicções intelectuais adquiridas ao longo de uma formação, mas sim, o questionamento do direito que o professor tem de privar o aluno de buscar, por ele mesmo, os sentidos do mundo e, consequentemente, condenar as crianças a um mundo pronto onde os valores já estão estabelecidos, dando a impressão que elas nada podem fazer em relação a isso. Segundo Lorieri (2002, p. 43): “Todos os seres humanos têm o direito de decidir os rumos das suas vidas”. Também crianças e jovens têm esse direito, como cabe-lhes o direito de aprender a dominar o uso das ferramentas intelectuais que lhes possibilitem as decisões.”
Desta forma, a introdução da reflexão acerca das questões trazidas pelos alunos não só ajuda a preservar o deslumbramento da criança com o mundo que a rodeia, como também oferece um ambiente propício ao fomento das ferramentas intelectuais dos discentes, condição para a formação da almejada autonomia de pensamento.
A inserção da prática reflexiva em sala de aula é viabilizada pelo diálogo, o outro elemento imprescindível para a realização de uma iniciação filosófica. É no estabelecimento de uma dinâmica dialógica que diferentes perguntas e respostas são construídas e desconstruídas (dependendo da qualidade dos argumentos que as sustentam), bem como se complementam e se transformam.
Deve-se ressaltar que um diálogo é muito diferente de um bate papo, de um debate ou de uma conversa na qual todos entram em acordo no final da mesma. Em um diálogo não existe o (saudável) descompromisso de um bate papo entre amigos, o qual tem como objetivo apenas o entretenimento dos envolvidos.
Diferentemente do debate, em um diálogo não existe um vencedor, a idéia não é destruir a argumentação do interlocutor, mas sim, apontar eventuais falhas no raciocínio do mesmo e, por conseguinte, colaborar com a construção do conhecimento em questão. Não há garantia que um diálogo termine em um consenso,
a diversidade de idéias na busca coletiva de conhecimento é o motor dessa dinâmica.
O diálogo favorece o cultivo daquilo que Lorieri (2002) cunhou de ferramentas intelectuais e que Lipman (1995) chama de habilidades de pensamento: formular perguntas relevantes, sustentar os argumentos demonstrando o percurso do raciocínio, autocorrigir-se, compreender e criar conceitos, transitar entre as diferentes linguagens mantendo o significado original do conceito em questão, entre outras.
Lipman desenvolveu um programa educacional (Filosofia para Crianças- Educação para o Pensar) que vê na investigação filosófica um caminho para aquisição de um pensamento mais cuidadoso.
Segundo o filósofo norte-americano, a utilização dessa proposta desde o início da vida escolar traria grandes benefícios para os alunos, entre eles, garantir o natural espanto da criança em relação ao mundo – como colocado anteriormente, condição necessária para desencadear qualquer processo reflexivo. Lipman utiliza alguns recursos para viabilizar a preservação do espanto supracitado: novelas filosóficas (histórias nas quais crianças se envolvem em uma série de aventuras levando os alunos a refletirem sobre os dilemas enfrentados pelos personagens); cultivo das já mencionadas habilidades de pensamento (como as de investigação, raciocínio, formação de conceitos e tradução); formação de Comunidades de Investigação. Estas últimas compreendem espaços onde, a partir do diálogo, as questões levantadas pelos alunos passam por um processo de investigação filosófica.
A ideia de Lipman é que o sistema educacional funcionasse baseado em um modelo que se realiza por meio de pesquisas e investigações (um modelo heurístico), pois se não é dada ao aluno a chance de participar do processo investigativo, o resultado será apenas um aluno instruído e não um aluno investigador, como o autor almeja.
Uma vez que se pretende formar um aluno pesquisador e crítico, a introdução de uma iniciação filosófica em sala de aula se torna desejável. E tanto melhor se essa iniciação ocorrer não só no escopo da disciplina Filosofia, mas for igualmente incitada nas propostas dos demais professores. Por estarmos especificamente tratando do Ensino Fundamental I, defende-se que a prática cotidiana do professor polivalente também poderia/deveria ser imbuída deste convite ao filosofar, a um processo de enfrentamento de problemas por meio de uma reflexão radical, metódica, global, crítica e criativa.
As crianças naturalmente trazem problemas para serem enfrentados em sala de aula, e é no afrontamento dessas questões, dentro de um diálogo investigativo (em que determinadas habilidades de pensamento são desenvolvidas), que uma iniciação filosófica se inicia. Há aqui um duplo desafio: não apenas conseguir detectar e desenvolver filosoficamente as questões dos alunos, mas igualmente, realizar as várias conexões existentes entre os espontâneos questionamentos dos alunos e os conteúdos curriculares a serem trabalhados ao longo dos anos letivos.
São inúmeras as possibilidades de relações entre os temas ditos filosóficos (e mencionados anteriormente) e os conteúdos das diferentes disciplinas escolares. Mais um indício de que o modo filosófico de pensar não deve se restringir apenas à aula de Filosofia, mas ser igualmente desenvolvido nas demais disciplinas da matriz curricular.

Referências bibliográficas
LIPMAN, M. O pensar na educação. Tradução de Ann Mary Fighieira Perpétuo.
Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
________; SHARP, A.M. Looking for meaning, Instructional Manual to accompany
Pixie.Montclair, NJ: The First Mountain Foundation, 1984.
LORIERI, M. Filosofia: fundamentos e métodos. Filosofia no ensino fundamental.
São Paulo: Cortez, 2002.
SAVIANI, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. Campinas:
Autores associados, 1996.

Guilherme Szymanski Ribeiro Gomes é mestre em Filosofia pela PUCSP (2006). Professor do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, professor de Filosofia (Ensino Fundamental) da Prima Escola Montessori de São Paulo e do Colégio Ofélia Fonseca. Pertence ao corpo docente do curso de pós-graduação lato sensu Fundamentos de uma Educação para o Pensar (COGEAE/PUC).

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