sábado, 9 de maio de 2015

As Metamorfoses do Sistema Representativo



 Por Odemir Silva

Desde a segunda metade do século XIX, o sistema representativo passou por mudanças profundas, que Manin agrupa em torno de duas grandes metamorfoses. A primeira delas marcou, no final do século XIX, a passagem da democracia de notáveis, denominada por ele de parlamentarianismo, para a democracia de partidos. A segunda representou o fim da democracia de partidos e o surgimento de um tipo de democracia que o autor qualifica como de auditório.
Três observações são importantes para compreender a tipologia de sistemas representativos que Manin elabora:

A primeira remete ao fato que os tipos construídos são tipos ideais, no sentido weberiano do termo. Ou seja, são construções conceituais que reúnem um conjunto de características, enfatizadas, com afinidade lógica entre si. Sua utilidade reside na comparação com casos empiricamente observados que apresentam quase sempre uma mistura de traços presentes em diversos tipos.

A segunda refere-se à inspiração histórica da tipologia. É evidente que os tipos foram inspirados numa sequência histórica determinada, o desenvolvimento do sistema representativo nos países ocidentais nos séculos XIX e XX. Podemos usar a tipologia para analisar a evolução concreta do sistema em determinado país. Mas também podemos usá-la para a compreensão de um determinado sistema presente, sem considerar seu desenvolvimento histórico.

A terceira diz respeito ao fundamento empírico da tipologia. Manin não criou os argumentos e justificações que caracterizam cada tipo. Todos são produtos dos teóricos do sistema em cada período histórico, mas há boas razões para supor que os atores do sistema, representados e representantes, compartilhavam a crença na validade desses argumentos.

Tipologia de sistemas representativos elaborados por Manin:
 
  1- Remete ao fato que os tipos construídos são tipos ideais, no sentido weberiano do termo;
  2- refere-se à inspiração histórica da tipologia; e
  3- diz respeito ao fundamento empírico da tipologia.

Para melhor compreender a natureza de cada um desses tipos e as razões das mudanças que vinculam um ao outro, vamos descrevê-los a partir dos quatro princípios mencionados anteriormente, quais sejam: os governantes são selecionados por meio de eleições regulares; as decisões dos governantes mantém algum grau de independência em relação à vontade dos representados; os representados podem manifestar livremente suas opiniões; as decisões são submetidas a debate público.
A consolidação do sistema representativo, primeiro no Reino Unido, depois nos demais países da Europa, ocorreu sob duas condições institucionais que determinaram seu formato inicial: o voto distrital uninominal como regra eleitoral e o voto censitário, ou seja, a restrição do direito de voto aos detentores de propriedade e renda. Em decorrência dessas condições, o número de eleitores era pequeno e concentrado por localidade. Não havia, nem eram necessários, partidos fora do parlamento. 
No que diz respeito à eleição dos representantes, a escolha dos eleitores tinha como fundamento a confiança pessoal dos representados nos seus representantes e o resultado eleitoral expressava a rede de relações locais dos candidatos. O político por excelência era o líder local, o notável.
A autonomia parcial ou relativa dos representantes manifestava-se na defesa apaixonada do voto de consciência dos deputados no parlamento. A autonomia do parlamentar era condição da legitimidade do sistema e deveria estar acima até mesmo dos compromissos partidários. Como consequência, a opinião pública, livre, não coincidia necessariamente com a expressão eleitoral da vontade do eleitor. Em outras palavras, os eleitores votavam segundo motivações pessoais, em vizinhos de sua confiança. Os grandes temas de confronto político não eram objeto das campanhas eleitorais e os cidadãos tomavam suas posições sobre eles participando de reuniões e assinando petições. Era frequente o conflito entre opinião pública e parlamento. Finalmente, o espaço para a livre discussão era o próprio parlamento, no qual deputados eram, como vimos, livres para mudar suas posições iniciais, para convencerem e serem convencidos pelo debate.

A partir da segunda metade do século XIX, a ampliação progressiva do direito de voto, primeiro até o sufrágio universal masculino, depois para o voto das mulheres, produziu uma nova situação que pôs fim à democracia dos notáveis. Para organizar e mobilizar o novo eleitorado, surgiram os partidos políticos, que logo se tornaram partidos de massa, definidos conforme critérios ideológicos que refletiam, normalmente, as divisões de classe presentes na sociedade. O sistema eleitoral com mais afinidade ao novo modelo foi o voto proporcional, que, adotado pela primeira vez em 1900, espalhou-se com sucesso em poucos anos. Na nova fase do sistema representativo, a quantidade de representados tornou impossível o conhecimento pessoal e, consequentemente, a confiança pessoal no representante. A eleição passou a expressar a lealdade dos eleitores a um determinado partido. O resultado eleitoral tornou-se expressão política, embora indireta, da estrutura de classes e a figura central da política deslocou-se do notável para o militante, o agitador e o burocrata do partido. A autonomia parcial dos representantes ganhou nova face: manifestou-se na liberdade das lideranças partidárias de definir as prioridades na plataforma do partido apresentada aos eleitores. A opinião pública tendeu a reproduzir as divisões partidárias, uma vez que a maior parte da imprensa escrita foi tomada por jornais de partidos. Com isso, a coincidência entre opinião pública e opinião partidária passou a ser a tendência dominante. O debate público retirou-se do parlamento, uma vez que deputados tinham, sempre que necessário, seu voto vinculado à posição definida por seu partido. Como disse o líder social-democrata alemão Kautsky, o deputado não era mais que a voz do partido no parlamento. O debate passou a acontecer no âmbito da discussão interna de cada partido, das negociações entre os partidos fora do parlamento, e nas conversas mantidas pelos governos com grupos de interesse organizados, como sindicatos de trabalhadores e organizações representativas de setores empresariais. O uso dos meios de comunicação de massas nas campanhas eleitorais, a partir das últimas décadas do século XX, veio alterar profundamente esse quadro. O rádio, a televisão e depois, com muito mais intensidade, todos os recursos da internet, de certa maneira restabeleceram o contato direto entre representante e representado, esquecido desde o fim da era dos notáveis. Partidos e suas burocracias, por muitas décadas os mediadores dessa relação, perderam  desde então importância, a ponto de se falar, novamente, numa crise profunda do próprio sistema representativo de governo.

Na democracia de audiência retorna, portanto, o elemento da confiança pessoal como decisivo da escolha do eleitor. Ao invés de uma escolha partidária previamente determinada, de motivação classista, o eleitor sente-se livre para responder a um leque de ofertas que as diferentes campanhas apresentam.
Seu voto passa a ser flutuante e a figura central da política passa a ser a do perito de mídia nas suas várias formas: o marqueteiro, o especialista em pesquisas de opinião, o candidato com talento midiático.
A autonomia relativa dos representantes se manifesta na indeterminação das propostas de campanha. As imagens públicas dos candidatos definem o resultado, de modo que as plataformas podem ser vagas o suficiente para manter uma larga margem de liberdade para os eleitos. A retração dos partidos, por sua vez, levou à separação entre a opinião pública e sua expressão eleitoral. A imprensa escrita, falada e televisiva ganha autonomia em relação aos partidos. Ganha importância também a manifestação da opinião pública por meio de pesquisas de opinião. A diferença em relação ao modelo anterior fica clara na comparação entre o caso Dreyfus, na França, na passagem dos séculos XIX e XX, e o caso Watergate, nos Estados Unidos dos anos 1970. Nesse último, a mídia não partidarizada permitiu que todos concordassem sobre os fatos, embora discordassem na avaliação deles. No caso francês, a partidarização da imprensa fez com que os próprios fatos não fossem objeto de consenso entre os dois campos que se formaram. Finalmente, o espaço do debate desloca-se novamente: agora passa a ocorrer debate nas negociações entre governo e grupos de interesse, de um lado, e, de outro, o debate na mídia, no qual os antagonistas procuram capturar a simpatia do eleitor flutuante, não mais vinculado, a priori, a um determinado partido por sua origem ou situação de classe.

Conclusão
Vimos neste Módulo que, a principal característica do Sistema Representativo é o monopólio das decisões políticas nas mãos de representantes eleitos pelo povo. Vimos ainda que ao longo da história quatro princípios do sistema mantiveram-se constantes: a seleção dos governantes por meio de eleições regulares, a autonomia relativa dos representantes em relação a seus representados, a vigência do direito à livre manifestação dos representados e a realização de um debate aberto prévio à tomada da decisão. Discutimos, finalmente, as metamorfoses do sistema ao longo de sua história: a passagem da democracia de notáveis para a democracia de partidos e, já avançado o século XX, a passagem da democracia de partidos para a democracia de audiência ou de auditório.

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