Por Odemir Silva
Desde a segunda metade do século XIX, o
sistema representativo passou por mudanças profundas, que Manin agrupa em torno
de duas grandes metamorfoses. A primeira delas marcou, no final do século XIX,
a passagem da democracia de notáveis, denominada por ele de parlamentarianismo,
para a democracia de partidos. A segunda representou o fim da democracia de partidos
e o surgimento de um tipo de democracia que o autor qualifica como de
auditório.
Três observações são importantes para
compreender a tipologia de sistemas representativos que Manin elabora:
A
primeira remete ao fato que os tipos construídos são tipos
ideais, no sentido weberiano do termo. Ou seja, são construções conceituais que
reúnem um conjunto de características, enfatizadas, com afinidade lógica entre
si. Sua utilidade reside na comparação com casos empiricamente observados que
apresentam quase sempre uma mistura de traços presentes em diversos tipos.
A
segunda refere-se à inspiração histórica da tipologia. É
evidente que os tipos foram inspirados numa sequência histórica determinada, o
desenvolvimento do sistema representativo nos países ocidentais nos séculos XIX
e XX. Podemos usar a tipologia para analisar a evolução concreta do sistema em
determinado país. Mas também podemos usá-la para a compreensão de um
determinado sistema presente, sem considerar seu desenvolvimento histórico.
A
terceira diz respeito ao fundamento empírico da tipologia.
Manin não criou os argumentos e justificações que caracterizam cada tipo. Todos
são produtos dos teóricos do sistema em cada período histórico, mas há boas
razões para supor que os atores do sistema, representados e representantes,
compartilhavam a crença na validade desses argumentos.
Tipologia de sistemas representativos elaborados por Manin:
1- Remete ao fato que os tipos
construídos são tipos ideais, no sentido weberiano do termo;
2- refere-se à inspiração histórica da
tipologia; e
3- diz respeito ao fundamento empírico
da tipologia.
Para melhor compreender a natureza de
cada um desses tipos e as razões das mudanças que vinculam um ao outro, vamos
descrevê-los a partir dos quatro princípios mencionados anteriormente, quais
sejam: os governantes são selecionados por meio de eleições regulares; as
decisões dos governantes mantém algum grau de independência em relação à
vontade dos representados; os representados podem manifestar livremente suas opiniões;
as decisões são submetidas a debate público.
A consolidação do sistema representativo, primeiro
no Reino Unido, depois nos demais países da Europa, ocorreu sob duas condições
institucionais que determinaram seu formato inicial: o voto distrital
uninominal como regra eleitoral e o voto censitário, ou
seja, a restrição do direito de voto aos detentores de propriedade e renda. Em
decorrência dessas condições, o número de eleitores era pequeno e concentrado
por localidade. Não havia, nem eram necessários, partidos fora do
parlamento.
No que diz respeito à eleição dos representantes, a
escolha dos eleitores tinha como fundamento a confiança pessoal dos
representados nos seus representantes e o resultado eleitoral expressava a rede
de relações locais dos candidatos. O político por excelência era o líder local,
o notável.
A autonomia parcial ou relativa dos representantes
manifestava-se na defesa apaixonada do voto de consciência dos deputados no
parlamento. A autonomia do parlamentar era condição da legitimidade do sistema
e deveria estar acima até mesmo dos compromissos partidários. Como
consequência, a opinião pública, livre, não coincidia necessariamente com a
expressão eleitoral da vontade do eleitor. Em outras palavras, os eleitores
votavam segundo motivações pessoais, em vizinhos de sua confiança. Os grandes
temas de confronto político não eram objeto das campanhas eleitorais e os cidadãos
tomavam suas posições sobre eles participando de reuniões e assinando petições.
Era frequente o conflito entre opinião pública e parlamento. Finalmente, o
espaço para a livre discussão era o próprio parlamento, no qual deputados eram,
como vimos, livres para mudar suas posições iniciais, para convencerem e serem
convencidos pelo debate.
A partir da segunda metade do século
XIX, a ampliação progressiva do direito de voto, primeiro até o sufrágio
universal masculino, depois para o voto das mulheres, produziu uma nova
situação que pôs fim à democracia dos notáveis. Para organizar e mobilizar o
novo eleitorado, surgiram os partidos políticos, que logo se tornaram partidos
de massa, definidos conforme critérios ideológicos que refletiam, normalmente,
as divisões de classe presentes na sociedade. O sistema eleitoral com mais
afinidade ao novo modelo foi o voto proporcional, que, adotado pela primeira
vez em 1900, espalhou-se com sucesso em poucos anos. Na nova fase do sistema
representativo, a quantidade de representados tornou impossível o conhecimento
pessoal e, consequentemente, a confiança pessoal no representante. A eleição
passou a expressar a lealdade dos eleitores a um determinado partido. O
resultado eleitoral tornou-se expressão política, embora indireta, da estrutura
de classes e a figura central da política deslocou-se do notável para o
militante, o agitador e o burocrata do partido. A autonomia parcial dos
representantes ganhou nova face: manifestou-se na liberdade das lideranças
partidárias de definir as prioridades na plataforma do partido apresentada aos
eleitores. A opinião pública tendeu a reproduzir as divisões partidárias, uma
vez que a maior parte da imprensa escrita foi tomada por jornais de partidos.
Com isso, a coincidência entre opinião pública e opinião partidária passou a
ser a tendência dominante. O debate público retirou-se do parlamento, uma vez
que deputados tinham, sempre que necessário, seu voto vinculado à posição
definida por seu partido. Como disse o líder social-democrata alemão Kautsky, o
deputado não era mais que a voz do partido no parlamento. O debate passou a
acontecer no âmbito da discussão interna de cada partido, das negociações entre
os partidos fora do parlamento, e nas conversas mantidas pelos governos com
grupos de interesse organizados, como sindicatos de trabalhadores e
organizações representativas de setores empresariais. O uso dos meios de
comunicação de massas nas campanhas eleitorais, a partir das últimas décadas do
século XX, veio alterar profundamente esse quadro. O rádio, a televisão e
depois, com muito mais intensidade, todos os recursos da internet, de certa
maneira restabeleceram o contato direto entre representante e representado,
esquecido desde o fim da era dos notáveis. Partidos e suas burocracias, por muitas
décadas os mediadores dessa relação, perderam
desde então importância, a ponto de se falar, novamente, numa crise
profunda do próprio sistema representativo de governo.
Na democracia de audiência retorna,
portanto, o elemento da confiança pessoal como decisivo da escolha do eleitor.
Ao invés de uma escolha partidária previamente determinada, de motivação
classista, o eleitor sente-se livre para responder a um leque de ofertas que as
diferentes campanhas apresentam.
Seu voto passa a ser flutuante e a
figura central da política passa a ser a do perito de mídia nas suas várias
formas: o marqueteiro, o especialista em pesquisas de opinião, o candidato com
talento midiático.
A autonomia relativa dos representantes
se manifesta na indeterminação das propostas de campanha. As imagens públicas
dos candidatos definem o resultado, de modo que as plataformas podem ser vagas
o suficiente para manter uma larga margem de liberdade para os eleitos. A
retração dos partidos, por sua vez, levou à separação entre a opinião pública e
sua expressão eleitoral. A imprensa escrita, falada e televisiva ganha
autonomia em relação aos partidos. Ganha importância também a manifestação da
opinião pública por meio de pesquisas de opinião. A diferença em relação ao
modelo anterior fica clara na comparação entre o caso Dreyfus, na França, na
passagem dos séculos XIX e XX, e o caso Watergate, nos Estados Unidos dos anos
1970. Nesse último, a mídia não partidarizada permitiu que todos concordassem
sobre os fatos, embora discordassem na avaliação deles. No caso francês, a
partidarização da imprensa fez com que os próprios fatos não fossem objeto de
consenso entre os dois campos que se formaram. Finalmente, o espaço do debate
desloca-se novamente: agora passa a ocorrer debate nas negociações entre
governo e grupos de interesse, de um lado, e, de outro, o debate na mídia, no
qual os antagonistas procuram capturar a simpatia do eleitor flutuante, não
mais vinculado, a priori, a um determinado partido por sua origem ou situação
de classe.
Conclusão
Vimos neste Módulo que, a principal
característica do Sistema Representativo é o monopólio das decisões políticas
nas mãos de representantes eleitos pelo povo. Vimos ainda que ao longo da
história quatro princípios do sistema mantiveram-se constantes: a seleção dos
governantes por meio de eleições regulares, a autonomia relativa dos
representantes em relação a seus representados, a vigência do direito à livre
manifestação dos representados e a realização de um debate aberto prévio à
tomada da decisão. Discutimos, finalmente, as metamorfoses do sistema ao longo
de sua história: a passagem da democracia de notáveis para a democracia de
partidos e, já avançado o século XX, a passagem da democracia de partidos para
a democracia de audiência ou de auditório.
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