Por Odemir Silva
Se excluirmos de todos os sistemas de
governo registrados ao longo da história os regimes despóticos, nos quais as
decisões estão completamente fora do alcance da vontade e influência dos
cidadãos, restam para nossa análise dois grandes sistemas de governo: a
democracia direta e o sistema representativo. Para traçar a diferença precisa
entre eles, é preciso evitar dois erros muito presentes em nosso senso comum.
De acordo com o primeiro erro, na
democracia direta, o povo, reunido em assembleia, é responsável imediato por
todas as decisões. Não haveria, portanto, mandatários, sejam eles eleitos ou
escolhidos por sorteio. O problema é que um sistema como esse jamais existiu.
Pelo menos, não é o que os dados disponíveis nos dizem sobre os exemplos
históricos de democracia direta, seja na Grécia clássica, seja nos cantões
suíços de hoje. Nesses, e em todos os demais casos conhecidos, sempre houve e
há funcionários eleitos e/ou sorteados incumbidos de tomar decisões importantes
para a comunidade.
Conforme o segundo erro, haveria
simplesmente uma relação de continuidade entre a democracia direta e o sistema
representativo. Na observação conhecida de Rousseau, o tamanho das sociedades
políticas inviabiliza hoje a democracia direta e teríamos que nos contentar com
uma democracia menor, imperfeita, porém exequível, na forma do sistema
representativo.
No entanto, essa ideia colide com a
percepção dos teóricos fundadores do sistema representativo, que o viam como
algo oposto e superior à democracia direta. Para Sièyes, a representação é
indispensável na sociedade moderna, onde o cidadão se ocupa principalmente do
próprio bem-estar e não tem tempo para a participação política. Para Madison, a
representação política deixaria o poder nas mãos dos mais sábios e produziria
decisões intrinsecamente superiores àquelas que o povo em sua totalidade
tomaria. Nos dois casos, os representantes, por seleção ou por especialização,
seriam mais capazes de tomar decisões corretas que seus representados. Antes de
uma relação de continuidade, transparece nesses argumentos uma relação de
oposição entre democracia direta e sistema representativo.
Para resolver a questão, podemos partir
de uma observação de Madison: a
diferença real entre um e outro sistema não está na exclusão completa dos
representantes do povo na democracia direta, mas na exclusão completa do povo
reunido de qualquer decisão no sistema representativo. Num e noutro sistema, há
representantes, eleitos ou sorteados, mas somente no sistema representativo
esses representantes detêm o monopólio das deliberações políticas.
A
seguir, trataremos de alguns princípios gerais que caracterizam o sistema
representativo.
Os quatro princípios assinalados a
seguir desenvolveram-se pela primeira vez no Reino Unido, a partir da segunda
metade do século XIX, de onde se espalharam pela Europa continental.
Primeiro
princípio: os governantes são selecionados por meio de
eleições regulares.
Este princípio afirma duas coisas
distintas: só os representantes governam e são escolhidos mediante eleição. Em
contraste, nas democracias diretas, a assembleia de cidadãos toma decisões e é
comum a escolha por sorteio, de acordo com a lógica de dar a todo cidadão que o
deseje a oportunidade igual de participar do governo. No exemplo ateniense,
cargos que demandassem habilidade técnica, como generais e tesoureiros, eram
preenchidos por eleição, com possibilidade de reeleição. Já os mandatos no
colegiado que executava as decisões da Assembleia e nos tribunais eram sujeitos
a sorteio e a recondução era vedada, na lógica de dividir esses cargos pelo
maior número possível de cidadãos.
Segundo
princípio: as decisões dos governantes mantêm algum grau de
independência em relação à vontade dos representados.
Desde o início o sistema representativo
posicionou-se contra todo tipo de mandato imperativo, assim como contra sua
consequência lógica, a possibilidade de os representados substituírem seus
representantes antes do término de seus mandatos.
Terceiro
princípio: os representados podem manifestar livremente suas
opiniões.
Há uma opinião pública, livre, que os
representantes não podem controlar e precisam levar em consideração se querem
pensar na eleição seguinte.
Quarto
princípio: as decisões são submetidas a debate público.
Em algum momento do processo, as
decisões passam por um debate aberto e transparente.
A seguir, apresentaremos, em linhas
gerais, a tipologia dos sistemas representativos proposta pelo cientista
político Bernard Manin.
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