Por Odemir Silva
Desde que surgiu, a palavra democracia
suscita debates. Na antiguidade, democracia era o governo
de muitos e designava um sistema bem conhecido de regras de governo
das cidades. A discussão se concentrava mais nas suas virtudes e defeitos, em
comparação com os sistemas alternativos, o governo
de poucos e o governo
de apenas um. A partir da modernidade, a discussão se amplia cada vez mais:
discute-se o significado do termo; o processo de tradução dos princípios
democráticos em regras e instituições; e a construção de instrumentos capazes de
avaliar o grau de democracia presente em cada arranjo institucional concreto.
Como não poderia deixar de ser, leituras
diferentes do significado da democracia coincidem com regras operacionais
diferenciadas e sistemas políticos bem distintos em seu funcionamento. Diversos
autores têm analisado a questão, nos anos recentes, desde que Robert Dahl publicou,
na década de 1950, suas reflexões sobre democracia populista,
democracia hamiltoniana
e poliarquia.
Nesse rumo, uma das tentativas recentes mais interessantes, que demonstrou
capacidade de reunir de forma coerente dados de vários países, a respeito dos
aspectos mais diversos de seus sistemas políticos, é a obra de Arend Lijphart,
que desenvolve, a partir de 1984, a comparação entre dois modelos diferentes de
democracia: a democracia majoritária
e a democracia consensual.
Conforme o autor, esses dois modelos têm
sua origem em interpretações diferentes, até antagônicas, do significado de
democracia, e estão na origem de arranjos institucionais diferentes adotados
pelas democracias do mundo. Observados em dimensões selecionadas do sistema
político, esses modelos produzem, em cada uma delas, escalas situadas entre os
dois tipos ideais puros:
o majoritário extremo, de um lado, e o
consensual absoluto, de outro. Com essas escalas em mãos, o cientista político
- aquele que conhece profundamente a história dos processos políticos e
tem habilidades para definir tendências e sugerir caminhos - é capaz de
medir qualquer democracia existente, de situá-la nessa grade e compará-la com a
situação vigente em outros países. Vamos apresentar a reflexão de Lijphart,
discutindo, em primeiro lugar, a definição do binômio majoritário/consensual.
Em segundo lugar, vamos expor como esse par se manifesta na forma de diferenças
em cada uma das características do sistema político que o autor seleciona. O Reino
Unido e muitas de suas antigas colônias são exemplos de países que adotam o
sistema majoritário. A Suíça e a Bélgica, assim como a experiência em progresso
da União Europeia, praticam o modelo consensual.
Democracia Majoritária e Democracia Consensual
A diferença entre os dois modelos de
democracia encontra-se presente já na definição mais simples da palavra,
clássica e enraizada no senso comum - governo pelo povo, para o povo -. Aceita
esta definição geral, a questão se revela quando perguntamos: Como
proceder? Quando? Como ocorre quase
sempre que houver divergências no meio do povo sobre o que fazer? Que
funcionários devem fazê-lo? Uma resposta possível, muito difundida, defende a
prevalência da vontade da maioria dos eleitores. Nessa visão, não importa se
essa maioria é ampla ou estreita; inaceitável seria apenas o governo de uma
minoria de eleitores. Esse o princípio da democracia majoritária: definida
alguma maioria, cabe a ela governar, por intermédio dos nomes por ela
indicados. À minoria resta fazer a crítica ao governo, até o fim do seu
mandato, quando uma nova eleição abrirá a oportunidade de sua transformação em
maioria.
Uma resposta alternativa é deixar a
decisão com o maior número possível de pessoas. O governo de minoria também é recusado
por essa visão, mas a ampliação permanente da maioria é mais importante que a
contagem simples dos votos num momento determinado. Esse o princípio da
democracia consensual. A democracia majoritária concentra o poder. Traduzida em
instituições, produz sistemas excludentes, nos quais a relação entre maioria e
minoria, governo e oposição é caracterizada pelo embate e pela competição. A
democracia consensual tende a partilhar, limitar e dispersar o poder. Opera
principalmente por meio da negociação e da concessão.
Bons exemplos do modelo majoritário de
democracia são o Reino Unido e muitas de suas antigas colônias. Os países mais
próximos do modelo consensual, segundo o autor, são a Suíça e a Bélgica, assim
como a experiência em progresso da União Europeia.
Se considerarmos, de um lado, a procura
de acordos cada vez mais amplos e, de outro, a aferição da maioria mínima como
dois princípios gerais, opostos, que informam a construção de regras e
instituições democráticas, é possível procurar as diferenças entre os dois
modelos na disparidade existente entre essas regras e instituições nos diversos
países democráticos do mundo.
Nessa busca, o autor seleciona dez
diferenças relevantes, agrupadas em dois grupos distintos.
O primeiro diz respeito à relação entre
o Poder Executivo, os partidos políticos e os grupos de interesse.
Diferenças na dimensão Poder
Executivo e Partidos Políticos
Você sabe dizer quais as diferenças de
concentração do Poder Executivo em ministérios formados por apenas um partido
majoritário e a distribuição do Poder Executivo em ministérios de amplas
coalizões partidárias?
O Reino Unido e outros países que adotam
o voto distrital
uninominal tendem a desenvolver sistemas bipartidários. Nessa
situação, um partido pode conquistar a maioria das cadeiras do parlamento com
uma maioria muito pequena de votos ou até, devido às diferenças do número de
votantes nos distritos, com a minoria dos votos. No entanto, essa pequena
maioria de cadeiras dá a esse partido o poder sobre todo o ministério.
Em contraste, nos países onde predomina
o modelo consensual de democracia os cargos no ministério são divididos entre
os partidos com maior expressão. Na Suíça, os três maiores partidos ocupam as
sete vagas do Conselho Federal, segundo uma fórmula aprovada em 1959,
respeitada a proporção dos grupos linguísticos na população. Na Bélgica, a
participação isonômica dos grupos linguísticos está prevista na lei e desde
1980 todos os governos
são coalizões de quatro a seis partidos.
Relações entre Executivo e Legislativo
com dominância do Executivo versus relações equilibradas entre os Poderes
Nos países exemplo do modelo
majoritário, o sistema é parlamentarista. Em tese, portanto, a Câmara predomina
sobre o gabinete e pode derrubá-lo por meio de um voto de desconfiança. Na
realidade, porém, o gabinete é formado pela maioria e reúne as principais
lideranças do partido majoritário. Na operação cotidiana do sistema, a
iniciativa cabe ao gabinete, que mantém uma relação de dominância em relação ao
Legislativo.
Em contraste, na Suíça, os membros do
Conselho Federal são eleitos individualmente, com um mandato fixo de quatro
anos. O Legislativo não pode destituí-los, de modo que vigora uma situação
de separação de poderes rígida.
Na Bélgica o sistema é parlamentarista, mas como os gabinetes são de coalizão,
sua situação é mais vulnerável e não se verifica a relação de dominância
característica dos sistemas bipartidários.
Sistemas Bipartidários versus Sistemas Multipartidários
Sistemas bipartidários são afins com o
modelo majoritário de democracia, uma vez que dividem o campo da política, por
definição em maioria e minoria. No entanto, são capazes de representar
satisfatoriamente a diversidade de posições relevantes da sociedade somente em
circunstâncias muito especiais: alto grau de homogeneidade ideológica da
sociedade, no qual as diferenças se concentram numa dimensão, normalmente a
econômica. Assim ocorre no Reino Unido, onde a diferença entre os partidos
Conservador e Trabalhista se restringe à política econômica. Mesmo no Reino
Unido, a diversificação política da sociedade empurra o sistema para uma
situação de três partidos, como ocorre hoje.
Na Suíça e na Bélgica, a diferenciação
religiosa e linguística não se deixa representar por um sistema de dois
partidos. Assim, na Suíça, 15 partidos têm assento no Legislativo e os quatro
mais importantes participam do Conselho. Na Bélgica, os três partidos nacionais
tradicionais, dividiram-se a partir da língua e outros partidos menores
surgiram depois disso.
Sistemas Eleitorais Majoritários e
desproporcionais versus Representação Proporcional
O voto majoritário em distritos
uninominais é o sistema com maior afinidade com o modelo majoritário de
democracia. Entrega o poder de formação do governo ao partido que obtém a
primeira maioria.
O exame das eleições inglesas mostra que
o partido vencedor, encarregado da formação do governo, nunca obteve, entre
1974 e 1999, mais de 44 % dos votos. Em 1974, o Partido Trabalhista conseguiu a
maioria das cadeiras com apenas 39 % dos votos.
Em contraste, a Suíça e a Bélgica adotam
a representação proporcional, que procura reproduzir, na medida do possível, na
Câmara, a mesma distribuição de posições políticas que se observa no eleitorado
como um todo.
As relações entre maioria e minoria no
modelo majoritário de democracia são caracterizadas pela competição e pelo
conflito, restando espaço para a cooperação só em situações de emergência, como
a guerra, que produziu gabinetes de união nacional. As mesmas relações se
reproduzem na dinâmica da interação dos grupos de interesses entre si,
principalmente as grandes centrais de sindicatos laborais e patronais, e entre
eles e o Estado. Esse é o padrão que prevalece na história britânica recente,
que atingiu seu extremo nas duas décadas conservadoras após 1979.
Em contraste, o corporativismo é
caracterizado pela predominância de relações de negociação e cooperação dos
grupos de interesse entre si e com o Estado. Suas características mais
evidentes são a concentração dos grupos de interesse em poucas e grandes
associações, o protagonismo das organizações de cúpula do sistema e a
concertação tripartite, ou seja, a construção de grandes acordos periódicos
entre governo, empresários e trabalhadores que envolvem salários, emprego e
condições de trabalho. Todas essas características são encontradas na Suíça e
na Bélgica.
Diferenças na dimensão
Federal-Unitária
Nesta unidade, vamos
tratar das diferenças na dimensão federal-unitária e suas articulações com:
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A organização unitária do governo
é característica dos países que praticam o modelo majoritário de democracia. O
Reino Unido é um país unitário e tradicionalmente um dos mais centralizados do
mundo. Governos
locais existem, mas são criados pelo governo
central e dele dependem financeiramente.
O melhor exemplo foi o governo
autônomo que governou
a Irlanda do norte entre 1921 e 1972. Nesse ano, contudo, uma decisão da Câmara
dos Comuns, por maioria simples, decretou o fim do governo
autônomo e sua substituição pelo governo
direto de Londres.
A Suíça é uma federação,
na qual o poder é dividido entre o governo
central e os governos
dos cantões e sub-cantões. A Bélgica, um país unitário e centralizado até 1970,
caminha desde então para a federação
e a descentralização. A federação
foi legalmente reconhecida em 1993 e reúne simultaneamente, três áreas
geográficas e três comunidades linguísticas.
O Reino Unido foge, de certo modo, do
tipo ideal de democracia majoritária
nesse ponto, pois adota o bicameralismo.
No entanto, a Câmara dos Lordes perdeu toda função legislativa, exceto a de
retardar a vigência das leis aprovadas pela Câmara dos Comuns, pelo prazo
máximo de um ano. A maior parte dos poderes anteriores dos Lordes foi perdida
na reforma de 1911 e, em 1949, o prazo máximo de postergação da vigência das
leis caiu de 2 para um ano. Mesmo esse poder, na prática, poucas vezes é utilizado.
Na Suíça, o Conselho Nacional e o
Conselho dos Estados (equivalente ao Senado) são equipotentes, a regra da
eleição dos membros do Conselho dos Estados é o voto majoritário,
ao contrário da representação proporcional que vigora para o Conselho Nacional.
O bicameralismo
é forte.
Na Bélgica, Câmara e Senado têm poderes
semelhantes, mas o Senado, apesar de obrigatoriamente representar os grupos
lingüísticos, ainda é eleito de maneira proporcional. O bicameralismo
belga é mais fraco que o suíço.
Não existe no Reino Unido uma
constituição escrita. Direitos dos cidadãos e competências de cada instituição
governamental estão definidos em algumas leis fundamentais, na legislação
ordinária, nos costumes e convenções. Em decorrência disso, essa constituição
não escrita é absolutamente flexível, pois pode ser alterada por maioria
simples na Câmara.
Contrariamente, tanto a Bélgica quanto a
Suíça obedecem a constituições escritas. A modificação da constituição, nos
dois países depende de maiorias qualificadas.
A Suíça exige a aprovação em referendo,
com maioria nacional e nos cantões mais importantes. Na prática, a população
dos cantões menores, um quinto da população total, tem poder de veto sobre as
emendas à constituição.
Na Bélgica são necessários dois terços
das duas Casas do Legislativo. Algumas leis exigem, além disso, maioria nos
dois grandes grupos linguísticos, o que dá à minoria francófona poder de veto
sobre elas.
Sem constituição escrita, o Reino Unido
não tem mecanismo de revisão judicial. Não há uma corte encarregada de aferir,
quando provocada, a constitucionalidade de uma lei aprovada pela Câmara. A
própria Câmara, isto é, a maioria, decide não só a constitucionalidade de
alguma lei, mas o próprio significado do que seja constitucional.
Escapando nesse ponto do modelo, o
Tribunal federal suíço não detém o poder de fazer a revisão judicial à luz da
constituição. Na Bélgica, a partir de 1988, os poderes da Corte de Arbitragem
foram ampliados e ela opera hoje como um tribunal constitucional.
O Banco da Inglaterra manteve
historicamente uma situação de dependência em relação ao gabinete. Apenas em
1997, o recém eleito governo trabalhista
concedeu ao Banco autonomia para definir a taxa de juros.
Na Suíça, é tradicional a independência
do Banco Central. A Bélgica transitou, a partir da década de 1990, de uma
situação de fraqueza do seu Banco Nacional para o alto nível de autonomia que
existe hoje.
Perspectivas
É difícil identificar linhas de mudança
similares em países que vivem situações muito díspares no que se refere à
democracia. Apesar das sucessivas ondas de democratização que diversos autores
identificam na história recente, cujo ponto alto mais recente foram as mudanças
ocorridas no leste europeu, persiste no mundo uma situação extremamente
desigual no que respeita à solidez democrática.
É importante sempre lembrar que Lijphart identifica
e descreve os modelos majoritário e consensual em contextos de democracia
consolidada. Feita a ressalva, é possível especular com a hipótese, sempre
sujeita à verificação, da predominância tendencial da democracia consensual.
No mundo globalizado, as diferenças extrapolam
o campo econômico e se expandem pelas dimensões étnicas, linguísticas,
religiosas e de estilo de vida. Garantir a voz e a participação das minorias
torna-se, cada vez mais, exigência para a vida política comum. Não por acaso,
as reformas políticas realizadas nos últimos vinte anos apontam para a
desconcentração do poder e o aumento do poder de veto de grupos minoritários, a
expansão do bicameralismo
e o fortalecimento da tendência no rumo da autonomia dos Bancos Centrais. O
futuro, da forma como o vemos hoje, parece estar nessa direção.
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Conclusão
Vimos neste Módulo que, a coexistência
no mundo moderno de concepções diferentes de democracia, que podem ser
ordenadas ao longo de um contínuo que vai da democracia majoritária
à democracia consensual.
De maneira sintética, a democracia majoritária
está preocupada com a definição de alguma maioria, por reduzida que seja, que
viabilize um governo
majoritário. Por sua vez, o foco da democracia consensual
é a partilha cada vez maior do poder, com a ampliação permanente do número
daqueles que o exercem.
Essas diferenças não se manifestam
apenas nas teorias da democracia, mas principalmente nos arranjos
institucionais nos quais a regra democrática se materializa. No plano das
relações entre o Poder Executivo, os partidos políticos e os grupos de interesse,
a democracia majoritária
guarda afinidade com ministérios unipartidários, predomínio do Poder Executivo
sobre o Legislativo, sistemas bipartidários, voto majoritário
e pluralismo e competição entre os grupos de interesses.
Por sua vez, a democracia consensual
mostra afinidade com ministérios de coalizão, equilíbrio nas relações entre os
poderes, sistemas multipartidários, voto proporcional
e grupos de interesse
organizados de forma corporativa e não competitiva.
No plano das diferenças entre as
organizações unitária e federada, a democracia majoritária
tem afinidade com o governo unitário
e centralizado, o unicameralismo, a flexibilidade da constituição, a ausência
de mecanismos de revisão constitucional e com a subordinação do Banco Central
às decisões da maioria. A democracia consensual,
por sua vez, tem afinidade com a organização federativa do governo,
com o bicameralismo,
a rigidez da constituição, a presença de mecanismos de revisão judicial e a
independência do Banco Central.
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Odemir Silva
Licenciado em Ciências Sociais
Pós Graduado em Filosofia
Uau, tudo copiado do curso de Política Contemporânea da Saberes no site do Senado!
ResponderExcluirTambém fiquei surpreso, Thaís.
ExcluirFui procurar um termo no Google e me deparo com um texto, parafraseando Egon Friedell, com tudo igual ao do original no senado, com a mesma diferença de três palavras: "por Odemir Silva".